Um escândalo contábil da proporção do revelado pela Americanas faz todos se questionarem sobre como e por que ninguém descobriu isso antes.

É uma dúvida que martela na cabeça do cidadão comum que só leu as manchetes sobre o caso e também na de agentes do mercado de capitais e de estudiosos dos temas de gestão e de governança corporativa.

“Mas como ninguém viu? O que estavam fazendo os conselheiros de administração, os membros do comitê de auditoria, a auditoria interna, a auditoria externa?”, insistem investidores, estudiosos e curiosos. E com razão.

No fim das contas, a pergunta de fundo é sobre o que é essa tal de “governança”, sobre a qual tanto se fala, mas que parece que, na hora H, não atende às expectativas dos investidores.

Já adianto que, infelizmente, não tenho a resposta, mas faço algumas considerações e trago hipóteses para discussão.

Boa governança corporativa depende do dono ou dos chatos

De início, recorro ao Instituto Brasileiro de Governança Corporativa (IBGC) para trazer a definição mais atualizada do termo, que consta da minuta do novo código que está em audiência pública:

Governança corporativa é o sistema formado por princípios, regras, estruturas e processos pelo qual as organizações são dirigidas e monitoradas, com vistas à geração de valor sustentável no longo prazo para a organização, seus sócios e a sociedade em geral. Esse sistema baliza a atuação dos agentes de governança e suas relações com as demais partes interessadas. Será bem-sucedido se amparado no propósito, valores e cultura da organização e na busca pelo equilíbrio entre as demandas de todas as partes interessadas e os impactos da organização para a sociedade em geral e o meio ambiente.”

Como se vê, trata-se de um sistema complexo, e não de uma coisa única e simples.

Não é tampouco um “check-list” que, infelizmente e muito comumente, uma vez cumprido, acaba sendo suficiente para obtenção de selos de “governança” ou inclusões em índices “de governança” que, por vezes, são confundidos com a própria definição, mas que estão distantes dela, como a realidade teima em mostrar.

Voltando ao texto do IBGC, trata-se de um sistema baseado em regras, princípios, estruturas e processos que prescrevem ou dirigem a forma pela qual uma empresa (ou organização) será comandada. Tentando adaptar a linguagem, espera-se que, ao colocar como norte a geração de valor de longo prazo para os sócios e a sociedade, esse sistema “seja do bem”. Outro pressuposto é que o sistema é autorregulado, com atribuição de papéis diferentes para que cada órgão que o integre tenha missões e incentivos para fazer sua parte e fiscalizar a conduta do outro.

O que a definição do IBGC não menciona, porém, é que esse sistema não é operado automaticamente — e nem pelo ChatGPT, para citar o robô de inteligência artificial da moda.

Ele depende de pessoas. E, no fim das contas, é daí que vem (ou não) a “tal da governança”.

Para deixar mais clara a minha percepção, os sistemas de controles internos e mesmo os órgãos de governança tradicionais — como conselho de administração, conselho fiscal, comitê de auditoria, diretoria estatutária, auditoria interna e auditoria externa, área de compliance, canal de denúncia etc — costumam funcionar deles “para baixo”.

Ou seja, se a cúpula da empresa for bem intencionada, esses órgãos de controle e governança lhe ajudam a evitar que desvios de conduta aconteçam ou a identificar e corrigir os erros quando eles ocorrem, e a punir os responsáveis quando se descobre quem fez o malfeito.

Aliás, é do interesse óbvio do dono evitar que os funcionários de sua empresa roubem estoques, recebam rebates no setor de compras, manipulem balanços de curto prazo para ganhar bônus indevidamente e assim por diante.

Mas não há sistema de controle ou de governança que resista a uma cúpula que queira fazer algo errado. Pela própria natureza hierárquica das organizações, um CEO ou mesmo o dono de uma empresa com controlador sempre terá alçada ou poder para mexer (ou para mandar que alguém mexa) nos sistemas ou faça algo que está fora das regras.

Para não ficar apenas no caso da Americanas, sobre o qual pouco sabemos cerca de um mês depois da revelação do rombo contábil, basta ver o relato dos processos recentes da CVM sobre “pagamentos indevidos” pela Gol e Hypera para entender que, quando o principal acionista manda fazer, a estrutura embaixo obedece e consegue esconder dos órgãos de controle.

“Mas como ninguém viu?” — volta a pergunta.

De novo, não tenho a resposta para esses casos. Mas trago hipóteses.

Como já tive oportunidade de cobrir escândalos contábeis brasileiros no passado, lembro de ouvir relatos de pessoas a princípio honestas que estiveram nesses órgãos de governança das empresas envolvidas e que contavam que realmente o caso lhes escapara (ainda que, a posteriori, alguns reconhecessem que estava diante dos olhos).

E o motivo, aparentemente, está na estrutura de teia do tal “sistema de governança”.

Como ele é formado por diversos órgãos e entidades, normalmente com pessoas bem formadas e experientes ou por empresas competentes e com boa reputação, a impressão é de que acaba ocorrendo um grande “deixa que eu deixo”, com um se fiando em que o outro está olhando mais de perto e, se nada viu, não há nada a ser questionado.

O conselheiro acha que o membro do comitê de auditoria está cuidando, que acha que a auditoria externa está olhando, que acha que a auditoria interna viu e assim por diante. E, na prática, ninguém está vendo de perto.

Soma-se a isso outro comportamento humano. Com raras exceções, as pessoas não gostam de ser tidas como chatas, ou se verem cercadas de pessoas consideradas chatas.

Mas quem assume um cargo de conselheiro de administração, fiscal, em comitê de auditoria ou de auditoria tem que se preparar para ser “chato”. Tem que questionar, duvidar, pedir novas explicações, documentos e reuniões até que se sinta confortável com a situação.

No caso da Americanas, as operações de risco sacado já vinham sendo objeto de ofícios da CVM há diversos anos, e aqui mesmo no Valor publicamos matéria ainda em 2017 sobre o assunto, destacando que as práticas das empresas eram diferentes. E a companhia sequer mencionava essas operações em notas explicativas, enquanto as principais concorrentes o faziam com destaque. A pergunta estava pulando em cima da mesa e tudo indica que ninguém foi chato o suficiente para exigir uma resposta.

A recompensa para a chatice é evitar a chateação de ser processado pela CVM e pela Justiça quando algo lhe escapar por querer manter a boa fama…Por Fernando Torres – editor-executivo do Valor.. leia mais em Valor Investe 09/02/2023