Elon Musk e o Judiciário
Não é só por aqui que Elon Musk e o Judiciário não se bicam. Em janeiro de 2018, o Conselho de Administração da Tesla aprovou um pacote de remuneração em ações para Musk, para valer pelos dez anos seguintes. O valor era inédito, mesmo para os já elevados padrões da companhia: US$ 56 bilhões .
O pagamento dependia do cumprimento de metas de valor de mercado e operacionais muito desafiadoras: a capitalização de mercado da Tesla teria que ultrapassar US$ 650 bilhões (era então pouco maior que US$ 50 bilhões), e metas de receita e rentabilidade também precisariam ser alcançadas.
A maioria dos acionistas da Tesla aprovou o plano na assembleia anual de 2018. Entretanto, alguns acionistas propuseram uma ação na Côrte de Delaware – onde a Tesla e a maioria das companhias abertas dos Estados Unidos são registradas, e que por isso tem competência para julgar demandas desse tipo.
A principal razão pela qual tantas grandes companhias norte-americanas são criadas segundo as leis do pequeno Estado de Delaware é exatamente a qualidade e a estabilidade das leis e das decisões judiciais ali proferidas, o que protege tanto os acionistas quanto as empresas.
Acontece que, em janeiro de 2024, a Juíza Kathaleen McCormick julgou o caso das ações de Musk e considerou o plano de remuneração ilegal. Para ela, apesar da aprovação dos acionistas, a proposta era excessiva e fora aprovada por membros do Conselho de Administração que teriam conflito de interesse.
A reação de Musk foi imediata. Além de denunciar o suposto ativismo da juíza – mencionando inclusive que ela fora indicada por um Governador do Partido Democrata –, o poderoso e estridente CEO da Tesla simplesmente mudou a sede da companhia para Austin, capital do Estado do Texas.
Já os advogados da Tesla seguiram o caminho de afirmar que a lei permitiria a ratificação da decisão do Conselho pelos acionistas, desde que devidamente informados do alegado conflito de interesses. A Tesla submeteu o plano novamente à assembleia, em junho deste ano. E como 77% dos acionistas votaram pela aprovação, pediu a reversão da decisão anterior.
Mas apesar do apoio maciço dos acionistas, no último dia 2 de dezembro a Juíza McCormick confirmou sua decisão de janeiro e manteve a invalidade da remuneração de Musk. A única “boa” notícia para a Tesla foi o valor dos honorários devidos aos advogados dos autores da ação judicial: U$ 345 milhões, e não os U$ 5 bilhões pretendidos.
McCormick listou quatro razões para recusar a pretensão de Musk. Duas foram processuais: não se poderia reverter uma decisão com base em provas produzidas após o julgamento e a própria defesa de ratificação só seria admissível antes do julgamento. As duas outras razões, contudo, foram de mérito.
Segundo a decisão, “uma votação dos acionistas, por si só, não pode ratificar uma transação envolvendo um controlador em conflito de interesses”. E, mesmo admitindo-se que pudesse, isso não seria possível no caso, “devido a múltiplas declarações relevantes falsas incluídas no material divulgado para os acionistas” em preparação para a assembleia.
Musk reagiu imediatamente no X: “Acionistas devem controlar os votos da companhia, não os juízes”. A companhia, também pela rede social, avisou que recorreria e alertou para os riscos: “Se essa decisão não for reformada, isso significará que juízes e advogados de autores de ações comandam as companhias em Delaware, e não seus legítimos donos”. Outros empresários apoiaram a crítica.
De fato, salvo nos raros casos em que se trate de um interesse público, é difícil sustentar que a maioria dos acionistas de uma companhia não tenha o poder de aceitar ônus estritamente patrimoniais. É o caso da lei brasileira, que contém uma lista muito restrita de matérias em que o poder da maioria não é suficiente, e reconhece o direito de o acionista vencido retirar-se do negócio em outros poucos casos.
Contudo, o protagonismo de Musk, tanto nesse caso concreto quanto no atual panorama político norte-americano, amplifica a questão, que passa a ser percebida como parte da crescente tensão, em todo o mundo, entre os poderes Executivo e Legislativo, eleitos pelo voto, e o Judiciário, onde a eleição é rara.
Em democracias, Constituições e leis impõem limites tanto aos agentes privados quanto aos poderes dos representantes eleitos pelo povo. E em regimes democráticos é ao Poder Judiciário que cabe fazer com que aqueles limites sejam respeitados, haja ou não tensão e estridência política no ar.
Mas isso não quer dizer que Constituições e leis também não imponham limites ao Poder Judiciário. Elas o fazem, e como cabe ao próprio Judiciário a última palavra sobre esses limites, tal poder deve ser exercido de maneira ainda mais cautelosa. Tanto quanto aos particulares, o Judiciário não pode afastar atos legítimos do Legislativo, nem legislar sem que este Poder tenha se omitido em fazê-lo… leia mais em Valor Investe 17/12/2024