Em terra de ‘zumbicórnios’, quem tem um chifre nem sempre é rei
No auge do boom das startups, alcançar o status de unicórnio – empresa avaliada em mais de US$ 1 bi – era sinônimo de sucesso. Hoje, com juros altos, capital escasso e pressões por rentabilidade, muitas dessas empresas bilionárias enfrentam dificuldades para captar recursos, manter valuation e até seguir operando. Conhecidas como “zumbicórnios”, elas simbolizam o choque entre o hype do passado e a nova realidade do mercado de capital de risco.
No mundo hoje, há 1.200 unicórnios apoiados por venture capital que ainda não abriram o capital ou foram adquiridos, segundo dados da CB Insights, consultoria que que monitora o setor de capital de risco.
O professor Ilya Strebulaev, da faculdade de Stanford, listou, somente em 2021, no hype da liquidez global, mais de 354 startups alçadas ao status de unicórnios, segundo reportagem da Bloomberg. Desse grupo, apenas 6 realizaram IPOs, 4 foram listadas via SPACs (empresa de aquisição de propósito específico) e algumas foram adquiridas, muitas vezes por valores abaixo de US$ 1 bi.
Embora IPOs e SPACs possam indicar sucesso em termos de liquidez, nem sempre representam criação de valor, já que muitos desses ativos têm desempenho ruim após a listagem. Além disso, segundo a Carta, fintech de especializada em estrutura de capital para startups, apenas 30% desses unicórnios conseguiram captar recursos privados nos últimos três anos, e metade enfrentou downrounds (desvalorização em relação a investimentos anteriores).
No Brasil, os 10 unicórnios dessa safra são: MadeiraMadeira, Hotmart, Mercado Bitcoin, Unico, Frete.com, CloudWalk, Daki, Facily, Merama e Olist. Informações públicas mostram que apenas Unico, Daki, Merama e Facily levantaram capital após 2021.
Unico aumentou sua avaliação, Daki perdeu o status, Merama indicou que se manteve com o selo unicorniano (apesar da mudança relevante de modelo de negócio). Facily, infelizmente, parece ter recebido um pequeno aporte para auxiliar no encerramento de suas operações.
Um pouco melhor do que os dados globais, temos 40% das startups levantando capital no período, com indícios dos mesmos 50% enfrentando downrounds. Importante frisar que nem toda empresa que opta por não levantar novas rodadas de investimento está necessariamente em dificuldades. Muitas podem buscar um crescimento orgânico e sustentável, priorizando a lucratividade.
Um exemplo notável é a CloudWalk, que apesar de não ter levantado nenhuma rodada de equity desde 2021, encerrou 2024 com um aumento de 67% na receita e um lucro líquido de R$ 339 mi, levantou 9 Fidcs, que somam mais de R$ 7,7 bi, demonstrando que esses objetivos podem coexistir.
No entanto, na indústria de VC, se uma empresa não levanta uma nova rodada em até 2 anos, isso pode indicar que seu modelo de negócio perdeu atratividade, que os investidores não veem mais potencial de crescimento, ou que a empresa está desconectada das novas prioridades do mercado — como o uso de IA ou eficiência financeira. Esse “silêncio” no cap table sinaliza estagnação ou dificuldades, o que afasta novos aportes e gera desconfiança.
Outro risco para o qual muitos startupeiros não se atentam é a diferença de preço entre os diferentes tipos de ação. As empresas de venture capital são frequentemente avaliadas pelo preço da última rodada. Segundo Strebulaev, se os cálculos fossem feitos corretamente, metade dos unicórnios perderia esse status. Isso porque as PNs têm preferência de liquidação em qualquer evento como venda ou mesmo quebra da empresa, portanto costumam valer mais, com um desconto de quase 40% para as ONs.
Com essa imparidade de valor, fundadores e suas equipes podem perder a motivação para continuar na difícil jornada de empresas financiadas por venture capitalists. E a maioria dos fundos não tem estrutura para gerenciar as empresas se os empreendedores saírem. Isso cria uma situação preocupante. Adicionalmente, a falta de liquidez no mercado local e o custo-Brasil podem agravar as dificuldades dos zumbicórnios sem estratégias sólidas de geração de caixa no curto e médio prazo.
Por isso, muitas vezes o conceito de unicórnio parece ser mais uma ferramenta de marketing do que uma métrica confiável de avaliação. Investidores e fundadores contribuíram para esse processo distorcido, impulsionados pelo “dinheiro fácil” da época e o status de pertencer a um grupo exclusivo.
Manter ou perder o status de unicórnio não define se o negócio é bom ou ruim, pois a empresa pode ser, na prática, um zumbicórnio: ostenta o status, mas carece de vitalidade real. No entanto, a probabilidade de desalinhamento entre a estrutura de capital e a nova realidade do VC é alta.
Portanto, sugiro uma conversa aberta entre os acionistas sobre possíveis soluções, sobre essas entidades que estão no limbo entre o hype passado e a realidade atual:
- Encerramento da empresa, com devolução do capital restante aos acionistas;
- Reorganização do “cap table” (quadro de capitalização da empresa), realinhando-o com os padrões do setor, de acordo com o estágio de maturidade da empresa (receita e crescimento);
- Estruturas de “pay to play” para novos investimentos, reajustando direitos e responsabilidades na governança e facilitando o financiamento para as próximas fases;
- Reprecificação de planos de stock options, para que os funcionários voltem a ver valor nas suas ONs, mantendo-se engajados. Ponto muito importante, porque investidores e founders estão se enganando se acharem que os executivos não estão reavaliando seus pacotes de remuneração que tinham preços de exercício atrelados a rodadas desconectadas com a realidade atual de mercado, e com a esperança de uma supervalorização das ações (árvores não crescem até o céu);
- Mais flexibilidade para founders e colaboradores para buscarem soluções de liquidez. Permitir que bebam um pouco de água durante a escalada ao cume da montanha pode atenuar a dureza com o alongamento da jornada para os empreendedores. Aqui vai do mercado secundário até formas de utilizar as próprias ações para compor garantias de financiamentos e empréstimos;
- Saída da trilha de VC, buscando investidores que valorizem o equilíbrio entre rentabilidade e crescimento, aceitando termos de alinhamento diferentes;
- Uma combinação das opções acima, entre outras possibilidades.
Como sempre digo: esperar um milagre não é uma estratégia recomendável, embora o otimismo seja importante para acreditar em eventos inesperados. Melhor antecipar a conversa difícil o quanto antes, para esclarecer que a sua startup não está vagando na terra dos zumbicórnios..AUTOR Cassio Azevedo – Chief Investment Officer da fintech Stockash, que oferece soluções de crédito para “stock options” de executivos e empreendedores... saiba mais em Pipeline Valor 06/04/2025