A onda de consolidação no setor da saúde impõe uma nova preocupação: como as empresas estão contemplando os stakeholders – clientes, funcionários, fornecedores e demais grupos de interesse – em um movimento frenético de fusões e aquisições que envolve hospitais, clínicas, operadoras de saúde, farmacêuticas e heathtechs. Para especialistas, é difícil mensurar se o pilar da governança da sigla ESG está sendo cuidado como deveria. Críticos veem a perna do ‘G’ e a do ‘S’ (social) nas empresas adquiridas muito distantes das estratégias das consolidadoras.

O movimento de fusões e aquisições (M&A, na sigla em inglês) em saúde começou há pouco mais de sete anos com a indústria farmacêutica, mas se intensificou na pandemia, envolvendo as empresas de serviços. Nesses processos, é comum envolver trocas de comando em áreas, diretorias e conselhos, demissões, mudanças de fornecedores e alterações nos portfólios de produtos e serviços. O que demonstra, na visão de especialistas, um interesse maior pelo negócio e menor pelos stakehoders das empresas compradas.

Em tese, as companhias abertas deveriam estar mais alinhadas com regras e práticas ESG mais rígidas, impostas pelo regulador e por acionistas. Mas, mesmo elas, ainda deixam a desejar. Um estudo da consultoria Resultante encomendado pelo Prática ESG mostrou que o setor soma 53 pontos dos 100 máximos na avaliação de 150 aspectos das três dimensões ESG. O dado, referente a setembro deste ano, está alinhado à média de todos os segmentos (55 pontos). Mas, o social é onde está a maior diferença: são 46,2 pontos de saúde contra 53,0 pontos na média. Em governança, saúde pontua 61,6, ante 63,4 pontos da média. Já ambiental, as 13 empresas analisadas estão melhor (53,4) do que a média geral (48,8). (Leiadetalhes na página H2)

ESG saúde

“Tudo o que é feito em ESG é o que traz retorno ao acionista. Aquilo que necessita de investimento, mas que não traz retorno, algumas empresas fazem, e outras dizem que estão fazendo, mas não estão”, observa Jairo Laser Procianoy, professor de Governança Corporativa e Finanças da Fundação Dom Cabral (FDC).

O professor lembra que uma das grandes vantagens de M&As é ganhar sinergias para reduzir custos fixos e variáveis e aumentar a eficiência dos negócios. “Nesses casos, o olhar é contrário ao ESG e está mais voltado ao ganho de valor ao acionista”, diz Procianoy. Porém, ele pontua que é importante levar em consideração que as grandes operações em saúde envolveram empresas que possuem gestão e governança mais sólidas. “E que elas podem estar endereçando melhor essas questões”, afirma.

Fazem parte de sua lista empresas como Mater Dei, Rede D’Or, Fleury, Dasa, Hapvida/Notre Dame, Albert Einstein e Sírio Libanês. Ele lembra que há cinco anos o Mater Dei e a Rede D’Or eram pequenos, mas eficientes. Tanto que o mercado lhes deu condições para captarem recursos, primeiro com a participação de fundos de private equity (PE), e, depois, com a abertura de capital na bolsa de valores (IPO, na sigla em inglês). “Outros que não eram eficientes e não tinham boa governança, não conseguiram.”

Passar por crescimento acelerado calcado em aquisições sem cuidar da governança é arriscado, na opinião da PwC. Para a consultoria multinacional dá para passar por processos de M&A com transparência, respeitando direitos de funcionários das empresas adquiridas, fazendo gestão mais “humanizada” de fornecedores, sem prejuízo ao cliente e à qualidade dos serviços e produto. “É possível, criando grupos para examinar sinergias, integração e valorização das pessoas. Em vez de demitir, usar o pessoal extra para compor e aumentar a velocidade do crescimento. Fazendo uma integração inteligente e humanizada”, diz Bruno Porto, sócio da PwC Brasil.

O último relatório da Deloitte, a partir de informações atualizadas pela plataforma de dados financeiros Transactional Track Record (TTR), em 2021, mostra 273 operações, avanço de 33% ante o ano anterior. Já de janeiro a setembro de 2022, as transações somaram 118, queda de 37% na comparação com as 188 registradas no mesmo período do ano passado. A Deloitte afirma que o setor tem 24 transações ainda em andamento e que novos negócios devem surgir de forma mais seletiva, pois ainda há espaço para consolidação, de acordo com a empresa.

No entanto, apesar da maior conscientização das empresas do setor de saúde em relação ao ESG, a consultoria diz que ainda há muito a fazer. Até porque o mercado de capitais tem criado regras para dar mais transparência às práticas ESG em seus relatórios, como a Resolução 59 da Comissão de Valores Mobiliários (CVM), e a mudança de metodologia da B3 para que empresas façam parte do ISE, seu índice de sustentabilidade.

Para operar na bolsa de Nova York, por exemplo, as empresas têm que divulgar seus resultados em ESG. “Este é um movimento irreversível na economia. E as empresas de saúde têm que se adequar”, afirma Jamile Balaguer Cruz, diretora de ESG da Deloitte. Segundo ela, as empresas que estão passando por processos de M&A na saúde estão todas evoluindo nesses aspectos, mas não há nenhuma com modelo exemplar. “No ‘G’ há muito a se fazer, especialmente no que tange à estratégia e à materialidade. Precisa haver compromissos claros e transparência das multifuncionalidades. Não vejo nenhum caso maduro no Brasil.”

A materialidade é essencial para criar parâmetros para a adoção das práticas ESG e, no setor de saúde, os pontos mais sensíveis são o uso da água, de energia, o descarte de resíduos, as condições de trabalho, o relacionamento com público externo, com fornecedores e clientes. A executiva explica que, quando ocorre um M&A, é preciso seguir as prioridades, mas alerta: o que pode ser prioridade para um hospital, pode não ser para uma clínica ou farmacêutica. “O maior desafio é com o c-Level e com os investidores, que têm de se alinhar com as diretrizes de materialidade. As empresas não estão sabendo mostrar a materialidade; este é um desafio da governança”, afirma Cruz.

Mas, se por um lado o retorno sobre o investimento é o que rege a lógica do capital, na outra ponta, o setor de saúde está experimentando um mundo com o qual não estava acostumado, que são os indicadores do mercado de capitais. “A relação com a governança era diferente. Era um setor com dificuldades de gestão. Nas aquisições, com a troca de administração, de gestão e governança, isso tem aparecido. Os grandes quando compram precisam melhorar a governança”, observa Leonardo Giusti, sócio e líder de Infraestrutura, Governo e Saúde da KPMG no Brasil.

Os especialistas consideram, porém, que hoje as empresas estão mais preocupadas com o entorno, com quem faz, com quem recebe o serviço e com a marca. “Apesar das empresas menores da saúde não estarem acostumadas ao compliance e a controles mais rígidos, as grandes estão tendo um cuidado maior com o cliente e o fornecedor local e com os aspectos de respeito à cultura e aos direitos de colaboradores das empresas compradas” afirma Leandro Berbert, sócio de Estratégia e Transações da EY-Parthenon… leia mais em Valor Econômico 05/10/2022