Na mais recente carta anual que escreveu para os acionistas da Berkshire Hathaway, o megainvestidor Warren Buffett fez um par de alertas capaz de colocar o investidor comum numa encruzilhada contábil.

Por um lado, criticou duramente práticas de manipulação (ilegal) e de gerenciamento (legal) de resultados por meio das quais executivos conseguem melhorar temporariamente os lucros divulgados, com o objetivo de “superar as expectativas” dos agentes de mercado, e provocar valorização das ações.

É possível fazer isso por meio de fraude contábil, claro. Mas também seguindo as regras do jogo. E tanto dentro da contabilidade oficial, dosando níveis de provisionamento por perdas com inadimplência ou em processos judiciais, para citar dois exemplos, quanto por meio da divulgação de medidas gerenciais de resultado: os famosos “lucro ajustado”, “Ebtida ajustado”, “lucro recorrente”, “resultado normalizado”, e o que mais a criatividade permitir.

Para ficar claro, não quer dizer que toda empresa que divulga medidas ajustadas de resultado esteja manipulando o mercado. Apenas que o uso de tais medidas, por não terem nenhum tipo de regra para escolha dos ajustes a serem feitos, agrega um nível de subjetividade que facilita o gerenciamento dos números, caso essa seja a intenção da administração da empresa.

Se ater aos números oficiais auditados é uma maneira de escapar dessa subjetividade dos “ajustes”. Porém, Buffett também critica a utilidade da informação que o uso das normas contábeis dos EUA traz para os acionistas da Berkshire. E aí está o problema: ele não está feliz nem com as medidas ajustadas, e nem com a contabilidade formal.

A crítica do megainvestidor à norma contábil americana, conhecida pela sigla GAAP, está no uso do valor justo para mensurar as participações minoritárias da Berkshire, com as variações desse valor justo causando lucros ou prejuízos bilionários momentâneos.

Enquanto os resultados das empresas controladas pela Berkshire são consolidados e refletem o desempenho da operação (desse modelo Buffett gosta), a mensuração do resultado desses investimentos minoritários em ações é registrado pela cotação dos papéis nas bolsas de valores.

Tentando traduzir, assim como muitos investidores, Buffett não gosta da “marcação a mercado” afetando o lucro trimestral da Berkshire.

De fato, o efeito da oscilação das ações na bolsa causa variabilidade dos lucros, e pode confundir alguns investidores. Mas qual seria uma boa alternativa, dado que a empresa de Buffett atua, nesses casos, quase como um fundo de investimento em ações?

Como o próprio Buffett cita na carta, seu investimento em Coca-Cola foi feito em 1994. Imagine se ele estivesse contabilizado pelo custo histórico de US$ 1,3 bilhão até hoje, em vez do valor de mercado de US$ 25 bilhões.

Essa seria uma informação mais útil para o investidor?

Uma alternativa de meio termo seria atualizar o valor dos investimentos pelo preço de mercado, mas com ajuste apenas no patrimônio líquido, sem transitar pela demonstração de resultados e, portanto, sem chegar às manchetes dos jornais.

Mas pensem num cenário em que Buffett pudesse ter perdido a mão, e seus investimentos em ações começassem a se desvalorizar sucessivamente ao longo dos anos. É melhor que o pequeno investidor perceba isso ao acompanhar nas manchetes os resultados trimestrais? Ou que ele tenha que procurar a desconhecida “demonstração de outros resultados abrangentes” para ver que essas participações estão com valor menor?

O fato é que não existe solução fácil para esse dilema.

Os normatizadores contábeis se esforçam para criar regras que possam ser usadas com consistência em dezenas de países e por milhares de empresas no mundo todo. A vantagem disso é permitir que os investidores comparem “banana com banana” quando forem ler seus balanços.

Mas é claro que seguir essas regras não vai necessariamente produzir a informação financeira mais útil para todos os tipos de investidores, de todas as empresas, e dos mais variados setores, em diferentes países.

E é por isso que as companhias adotam as tais medidas gerenciais e/ou ajustadas de resultado, e os investidores as acompanham.

Mas aí caímos, de novo, na necessidade de que esses investidores entendam os ajustes realizados e se as medidas acompanhadas são as mais úteis para as análises.

Pense no amplamente usado (mas pouco compreendido) Ebitda, mesmo sem nenhum tipo de ajuste. É a sigla para lucro antes do efeito do resultado financeiro (receitas e despesas financeiras), dos tributos que incidem sobre o lucro (IR e CSLL), e da depreciação e da amortização.

Um dos motivos para seu uso é que ele mostraria o “resultado da operação” da companhia, e se aproximaria da geração de caixa da empresa (ignorando aqui que ele não reflete a variação da necessidade de capital de giro no tempo).

Para ficar em apenas uma das linhas excluídas no cálculo do Ebitda, quem gosta da métrica explica que a “despesa com juros” seria decorrente da estrutura de capital da empresa (se ela é financiada em maior proporção por credores ou acionistas) e, portanto, dependeria mais de uma escolha de nível de alavancagem dos donos do que das decisões de executivos que cuidam das operações.

Isso é verdade em muitos casos. Mas não em outros tantos, e o investidor precisa saber disso. Para ficar no setor de varejo, que está em evidência por causa da Americanas, as despesas financeiras não têm relação apenas com os passivos que se vê no balanço (mesmo quando estão devidamente registrados).

Quando essas empresas vendem a prazo “sem juros” para seus clientes, e decidem antecipar os recebíveis, elas reconhecem despesas financeiras. E tem algo mais operacional para empresas desse setor do que a decisão de vender com um número maior ou menor de parcelas, aumentando ou reduzindo a competitividade da sua oferta perante a concorrência? Faz sentido considerar o aumento de receita (operacional) que pode ser decorrente da estratégia de aumentar o prazo, e ignorar o custo financeiro disso? Será que o Ebitda é uma boa medida de resultado para esse setor?

Outro caso recente que mostra que é necessário ir além da análise superficial dos números está nos balanços dos grandes bancos. Cada instituição usou um critério para reconhecer as perdas com Americanas. Itaú e Bradesco baixaram tudo, enquanto Banco do Brasil e Santander fizeram ajustes parciais. Faz sentido comparar os retornos desses bancos sem fazer ajustes para se chegar na “banana com banana”?

O fato é que a tecnologia já facilitou em muitos aspectos a análise de balanços. Mas, para o azar de Buffett e dos investidores em geral, ainda é preciso olhar as notas para entender a fundo a situação de cada empresa… leia mais em Valor Investe 02/03/2023