Faz alguns muitos meses que a as expectativas de inflação coletadas por meio do relatório Focus estão significativamente acima do limite superior do intervalo da meta. Pode-se dizer que já nos acostumamos a ler a cada ata divulgada pelo Comitê de Política Monetária (Copom) que as expectativas estão desancoradas.

O Sistema de Metas de Inflação (RMI) foi adotado no Brasil no ano de 1999 em substituição a sistemática adotada na implantação do Plano Real que contava com juros elevados e um âncora cambial, como forma de estabilizar a inflação. Com o colapso deste modelo, restou a equipe econômica buscar este que vige até os dias de hoje.

O pressuposto do RMI é que o Banco Central utilize os instrumentos de política monetária, notadamente a taxa de juros, para fazer com que os preços, ou a inflação, convirja para a meta previamente fixada. No caso brasileiro, mais de 20 países adotam o regime, a meta atualmente é de 3% com desvio de 1,5% para baixo ou para cima, ou seja, um intervalo que vai de 1,5% a 4,5% com centro em 3%.

A ideia lapidar do sistema de metas de inflação está assentada na convergência da formação das expectativas. O pressuposto é que se todos os agentes econômicos acreditarem que a inflação será aquela fixada, e amplamente divulgada, os reajustes dos preços, em média, estarão em linha com a meta. Algo como uma profecia autorrealizada.

O relatório Focus é um dos instrumentos com os quais o Banco Central conta para conhecer o humor e a confiança do mercado na capacidade da política monetária em fazer cumprir a meta de inflação. A partir das percepções recolhidas no relatório, a autoridade monetária calibra a execução da mesma.

O princípio do viés de ancoragem é que nós, em geral, quando temos de fazer uma previsão buscamos um número a partir do qual começamos a especular, para então ir refinando e ajustando os valores das estimativas. Esse número funciona como uma âncora, que fixada em um ponto central limita nossas extrapolações a área ao seu redor.

Nossa necessidade de partir de algum ponto é tão presente que mesmo números sem muita relação com uma situação em análise podem influenciar na fixação da âncora.

O estudo seminal sobre ancoragem foi publicado por Kahneman e Tversky em 1974.

Em um experimento com várias pessoas foi perguntado a cada uma delas qual a percentagem de países africanos que integram as Nações Unidas. Uma roleta com números entre 1 e 100, então, foi utilizada e, na sequência foi informado aos participantes que o número selecionado nada teria que ver com a pergunta que tinha acabado de ser formulada. Em seguida, pediu-se a cada um que dissesse se a percentagem pretendida era superior ou inferior ao número sorteado e que se estabelecesse uma estimativa para essa percentagem. O efeito da ancoragem foi significativo, na medida em que as respostas foram fortemente influenciadas pelos números obtidos no sorteio. Por exemplo, a estimativa mediana obtida na percentagem de países africanos nas Nações Unidas situou-se em 25% e 45% nos grupos cujos valores sorteados ficaram próximos a 10 e 65, respectivamente.

O princípio do RMI é este, o de criar uma âncora que direcione nossas decisões sobre reajustes de preços.

Sobre as causas da inflação brasileira, basta uma leitura um pouco mais atenta das atas do COPOM para compreender que o ritmo de crescimento da atividade econômica vem sendo turbinado por estímulos fiscais e gerado excesso de demanda que quando conjugado a alguns choques de oferta pontuais, como as enchentes do Rio Grande do Sul e os incêndios no Centro Oeste, criam este quadro de pressão persistente sobre os preços.

A desancoragem das expectativas não gera inflação, mas a falta de uma âncora retira dos agentes econômicos uma referência e um anteparo para aumentos defensivos de preços.

A causa raiz da inflação é bem conhecida, mas o Governo parece não compreender, ou prefere não arriscar o pouco capital político-eleitoral num processo de contenção de gastos com vistas a esfriar o consumo e a inflação. Ao contrário, a cada semana novos programas são anunciados com o objetivo de estimulá-la. Essa desconexão entre uma política fiscal expansionista e uma monetária contracionista tira efetividade desta, o que tem levado o Banco Central a elevar a taxa de juros a patamares há muito não vistos.

Nessa situação, hoje empresários e consumidores arcam com elevados custos em suas dívidas e estão sem parâmetros para ancorar suas expectativas sobre o que seria “justo” em relação aos aumentos de preços.

Um custo oculto para a sociedade está associado ao maior prazo que será necessário para voltar a ancorar as expectativas. Depois de tantos meses convivendo com valores tão longe do centro da meta, ou mesmo do seu teto, a crença de que a profecia se realizará vai ficando mais fraca. Mesmo quando os preços começarem a ceder em resposta as elevadas taxas de juros, será preciso um tempo adicional para que as pessoas passem a acreditar que agora é para valer.

Confiança é algo que demora para construir, que dissolve com muita rapidez e custa mais caro para reconstruir..AUTOR Hudson Bessa
Professor universitário e especialista em fundos de investimento. leia mais em Valor Investe 26/03/2025