A concentração do mercado editorial não é apenas econômica, mas também simbólica

No começo da noite da quarta-feira 3, foi anunciado que o Grupo Companhia das Letras comprou a Zahar, editora fundada em 1956 que, ao longo do tempo, depurou um catálogo de respeito, com Jacques Lacan, Manuel Castells, Zygmunt Bauman e outros destacados pensadores das ciências humanas. Foi a Zahar quem publicou, no ano passado, Como as democracias morrem, de Steven Levitsky e Daniel Ziblatt, que alcançou a lista de mais vendidos na esteira da eleição de Jair Bolsonaro. Mas o que significa a compra da Zahar pela Companhia das Letras? Tem a ver com a crise sem fim que há anos castiga o mercado editorial brasileiro e ficou ainda pior no ano passado, quando Saraiva e Cultura, as duas principais redes de livrarias do país, distribuíram calotes e pediram recuperação judicial? O mercado editorial brasileiro, que nunca foi lá muito pujante, vai ficar mais concentrado? Difícil dizer, mas podemos esboçar algumas respostas.

A formação de grandes conglomerados empresariais é rotina capitalista. E não só no mercado editorial: pense em bancos, cervejarias, frigoríferos, fábricas de aviões. Os monopólios e oligopólios sempre disputaram a alma do capitalismo com a crença na livre concorrência. Em vez de competir livremente na selva do mercado, às vezes compensa mais abocanhar uma fatia mais farta, comprando seus concorrentes. As fusões, aquisições e integrações também aparecem como soluções possíveis para driblar alguns dos desafios dos mercados globalizados, como a necessidade de investir pesado em novas tecnologias, marketing e logística e reduzir custos para não ficar para trás. Empresas médias e pequenas têm menos recursos para esses investimentos e chances menores de disputar consumidores com companhias mais parrudas num mercado cada vez mais imprevisível e atravessado por mudanças a todo tempo. Se você não pode vencê-las, por que não se juntar a elas?

A própria Companhia das Letras é um exemplo dessa tendência de formação de conglomerados. A editora foi fundada em 1986 pela família Schwarcz. Três anos depois, os Moreira Salles — do Unibanco, fundido com o Itaú em 2008 — passaram a controlar 33% da editora. Em 2011, a Penguin, grupo editorial inglês, comprou 45% da Companhia das Letras. No ano seguinte, foi a vez da Penguin enfrentar uma fusão com a concorrente Random House, controlada pelo gigantesco grupo alemão Bertelsmann. A fusão resultou a Penguin Random House, o maior conglomerado editorial do mundo. No ano passado, a Penguin Random House assumiu 70% da Companhia das Letras — os 30% restantes são da família Schwarcz; os Moreira Salles não têm mais participação na editora.

No meio caminho, houve outras fusões, aquisições e integrações. Em 2015, a Companhia das Letras adquiriu 55% da editora Objetiva. Desde 2014, a Objetiva estava sob o controle… da Penguin. Os ingleses controlavam a Objetiva porque haviam comprado alguns selos do grupo editorial espanhol Santillana, como a Alfaguara, e desde 2005 os espanhóis tinham 76% da Objetiva. Outros grupos editorais brasileiros também se formaram comprando editoras menores ou editoras que passaram a enfrentar dificuldades com o passar dos anos. A Ediouro Publicações comprou editoras como Agir, fundada por Alceu Amoroso Lima em 1944, e Nova Fronteira, criada por Carlos Lacerda em 1965. O Grupo Editorial Record também cresceu comprando casas editoriais menores, porém prestigiosas, como Paz e Terra, Civilização Brasileira e José Olympio. Aliás, em 1966, a José Olympio já havia comprado a Sabiá, editora criada por Rubem Braga e Fernando Sabino.

Mas e a crise, teve algo a ver com a compra da Zahar? Na quinta-feira 4, quando as entrevistei, Ana Cristina e Mariana Zahar informaram (e Luiz Schwarcz confirmou) que a editora enfrentou “com galhardia” a crise e continuou rentável apesar do calote das livrarias. Mas Ana Cristina também contou que a decisão de vender a Zahar foi acertada depois da vitória de Jair Bolsonaro nas eleições do ano passado, quando “os sonhos desabaram”. Ela disse ter concluído que, no novo governo, ficaria mais difícil tocar uma editora como a Zahar, de tamanho médio, dedicada às humanidades e com um respeitável catálogo infantojuvenil. Essa afirmação revela não só o temor de que foi acometido quase todo o mercado cultural depois da eleição de um governo que alia um extremado discurso liberalizante na economia a ataques ao conhecimento produzido pelas ciências humanas e ameaças censórias. Revela também a percepção de que o novo governo não ajudaria as editoras a superar a crise. Além da recessão e da recuperação judicial das livrarias, o que aprofundou ainda mais crise do mercado de livros foi a diminuição das compras governamentais — o setor, como tantos outros da economia brasileira, depende bastante do governo.

Vale lembrar que as editoras médias, como a Zahar, foram as que mais sofreram com o calote das livrarias. As editoras pequenas continuam bem, cada vez mais vigorosas, porque conquistaram um público cativo e aprenderam a escoar seus livros por canais alternativos, dependendo pouco ou nada da Saraiva e da Cultura. A interrupção dos pagamentos das livraras também balançou as grandes editoras, mas, além de melhores possibilidades de obter financiamento, elas são credoras prioritários da Saraiva e da Cultura, ou seja, vão receber (parte) do que lhes é devido antes das médias e pequenas.

No fim, o mercado editorial brasileiro fica menor depois da venda da Zahar? Se formos olhar os números, não exatamente. A Companhia das Letras domina 6% do mercado editorial brasileiro (o dado foi fornecido pela própria editora). Parece pouco, não? É porque as editoras mais rentáveis do Brasil são as que publicam livros didáticos, que vemos menos nas livrarias e nunca nos suplementos culturais. Com a compra da Zahar, o marketshare da Companhia das Letras vai aumentar bem pouco. A Zahar é uma editora bem menor. Enquanto a Companhia tem quase 180 funcionários e, até o fim do ano, publicará 240 livros, a Zahar conta com 27 funcionários e 30 títulos nas livrarias até dezembro.

No entanto, a concentração vai parecer bem maior do que, no contar dos números, é. Isso porque a Companhia das Letras vai aliar o prestígio da Zahar ao seu. Diferentemente de outras editoras que cresceram com aquisições de casas menores, a Companhia das Letras nunca ganhou o rótulo de editora comercial que publica best-sellers. Graças aos livros cabeçudos que lançou nos primeiros anos e a catálogo cheio de Nobéis e autores da moda, a casa conseguiu um prestígio sem igual no mercado brasileiro, que se reflete não só nas vendas, no marketshare, mas na ocupação de espaços “simbólicos” muito valiosos, como nas páginas da imprensa especializada e na atenção dos resenhistas.

Se, na vastidão no mercado, a Companhia das Letras tem muitos concorrentes, nesses espaços simbólicos a competição é menor. Os competidores não são outros grandes grupos editorias brasileiros, que acabaram descaracterizados depois tantas aquisições, mas editoras menores, donas de catálogos sólidos, capazes de disputar com a Companhia a caneta dos resenhistas — como a Zahar. Por isso, a concentração vai parecer maior do que é se levarmos em conta apenas os números. Se, no fim, concentração econômica é problema de agência governamentais, essa concentração “simbólica” deve interessar à imprensa e aos resenhistas, que são desafiados a contorná-la com criatividade e sem preguiça. Como? Abrindo espaço para outras editoras e autores interessantes que acabam passando despercebidos, aqueles que precisamos procurar um pouco mais para encontrar. Um dos problemas provocados pela concentração econômica é falta de diversidade. No mercado editorial, felizmente, essa diversidade já existe, mas de que adianta se não dermos espaço a ela?.. Leia mais em  epoca.globo 05/10/2019