Empresas com preço médio baixo, excesso de liquidez e ganhos de gestão fazem gigantes, como NotreDame, avançarem pelo mercado.

Irlau Machado, CEO da notredame “Vamos comprar mais. No fim desse processo, a empresa vai terminar bem maior do que está agora”  

O mineiro Irlau Machado Filho, presidente do grupo NotreDame Intermédica, uma das maiores operadoras de saúde do Brasil, não é daqueles que pensa pequeno. Muito pelo contrário. A rede de saúde não para de crescer, principalmente no número de beneficiários e de leitos. Somente no primeiro semestre deste ano foram desembolsados R$ 3 bilhões para a compra de quatro empresas do setor. Nos últimos dois meses, foram anunciadas outras três aquisições, todas em Minas Gerais. Vão custar mais R$ 1,5 bilhão. E o empresário segue disposto a ampliar o tamanho da companhia. A lógica de Machado é simples. Ir às compras significa reduzir custos da operação. E ampliar a rentabilidade logo à frente. “Vamos comprar mais. No fim desse processo, a empresa vai terminar bem maior do que está agora, com crescimento orgânico e inorgânico”, disse Machado.

A NotreDame Intermédica não é um caso isolado. O ano de 2020 tem sido opulento em aquisições, com algo inédito: disputas públicas pelo controle de empresas, fenômeno que, até agora, parecia exclusividade do mercado americano. O caso mais emblemático é da processadora de pagamentos Stone com a empresa de software Totvs, ambas companhias abertas, pelo controle da empresa de tecnologia voltada para o varejo Linx, também listada em bolsa. No dia 11 de agosto, Linx e Stone divulgaram fatos relevantes informando que estavam em negociações avançadas. Naquela mesma noite, a Stone anunciou a aquisição da Linx, num negócio avaliado em R$ 6 bilhões, sendo 90% em dinheiro e os 10% restantes em ações. Na proposta da Stone também foi estabelecida multa de R$ 605 milhões se uma das partes desistisse do negócio. Três dias depois, a Totvs fez uma oferta de R$ 6,1 bilhões, embolando a disputa. Além de oferecer mais dinheiro, a Totvs questionou a multa, chamando-a de “abusiva”. No início de setembro, a Stone reapresentou a proposta. O valor aumentou para R$ 6,4 bilhões. Por enquanto, a Stone está levando a melhor.

Disputas públicas como essa são raras, mas isso não quer dizer que elas não estejam ocorrendo em profusão. “A diferença é que elas ocorrem em particular”, diz o presidente da consultoria InBusiness, Mário Anseloni. Executivo experiente com uma longa trajetória no setor de TI (ele foi presidente da Itautec e da HP no Brasil), Anseloni dedica-se agora a costurar negócios entre empresas. E, em sua avaliação, o mercado está bastante aquecido, e isso não vai mudar tão já. “Há muitas transações ocorrendo”, disse ele. Os números mostram isso. Um levantamento da InBusiness obtido com exclusividade pela DINHEIRO indica que, até o fim de agosto, foram realizados 298 negócios no País, envolvendo aquisições, aportes de capital, fusões, vendas de ativos, aberturas de capital (Initial Public Offerings, ou IPOs) e ofertas subsequentes de ações. Mais da metade desses negócios não teve seus valores divulgados, como é regra nesse mercado. No entanto, somando-se apenas os valores divulgados, as transações societárias entre empresas e investidores movimentaram US$ 15,5 bilhões no ano.

“A maior parte das transações que observamos neste ano foi de empresas que queriam iniciar ou ampliar suas atividades no meio digital” Paulo Cury, Fundador da Condere

Em geral, a maior parte dessas transações é do setor de tecnologia da informação, caracterizado por seu dinamismo. Isso não mudou. Porém, a pandemia provocada pelo coronavírus lançou muita atenção sobre o setor de saúde, e isso movimentou o mercado. Segundo o levantamento, esse setor ficou em segundo lugar no número de transações (ver quadro ao lado). E esses números podem subir de maneira rápida uma vez que os temores sobre a pandemia se dissipem. “Várias transações pararam por causa do coronavírus”, disse Anseloni. “Mesmo assim, algumas empresas vão continuar comprando.”

Além dos fatores já conhecidos, como o impacto da pandemia sobre as empresas e a depreciação do real, que torna as companhias brasileiras relativamente baratas em comparação com os padrões internacionais, há outro ponto que vem agitando os negócios: os pacotes de ajuda econômica dos principais bancos centrais ao redor do mundo. Em uma conta aproximada, apenas o Federal Reserve (Fed, o BC americano) injetou US$ 5 trilhões na economia desde o início da crise, e reduziu os juros dos Estados Unidos para perto de zero. Tanto dinheiro tem de encontrar algo para fazer, o que torna viáveis aquisições que, em um passado recente, não faziam sentido.

O exemplo mais didático é o da NotreDame. Os números mostram essa rápida ascensão da operadora. De 2015 para cá, foram adquiridas 23 pequenas e médias empresas, ao custo de R$ 8,8 bilhões. Isso significa uma compra a cada dois meses e meio. A mais recente aquisição, anunciada no fim de agosto, a Medisanistas, de Belo Horizonte, que era do grupo colombiano Keralty, custará R$ 1 bilhão à empresa, por meio de financiamento. Uma das únicas que não foram compradas pela própria geração de caixa da companhia. A maior delas no período foi a compra da GreenLine, em 2018, por R$ 1,2 bilhão. E, em média, as compras da NotreDame se pagam em até três anos. “Quando a gente adquire um ativo, não é necessariamente o Ebitda da empresa que é o nosso atrativo e sim como é possível melhorar drasticamente por meio da verticalização de serviços”, afirmou Irlau Machado. “A estrutura própria nos leva a diminuir os custos.”

CENÁRIO DE ALTA 

A compra dos ativos vai ajudar a NotreDame, hoje avaliada em R$ 44 bilhões, a ampliar presença de mercado e seguir entre as líderes no segmento de planos de saúde. O grupo fechou o primeiro semestre com 3,5 milhões de beneficiários da área de saúde (alta de 29% sobre o mesmo período de 2019, quando fechou com 2,7 milhões de vidas), além de 2,5 milhões no plano odontológico, totalizando 6 milhões de clientes. Mas esse número já cresceu. Com os novos ativos, que ainda precisam ser aprovados pelo Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) e Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS), a rede já trabalha com um cenário de 4,2 milhões de beneficiários no plano de saúde, além de uma avenida de oportunidade para ampliação de carteira do segmento odontológico.

Em leitos, também avançou. Fechou o segundo trimestre com 2.827. Com as novas aquisições, chegará a 3.269. No balanço, eram 24 hospitais da rede própria no primeiro semestre. Agora são 29. Para se ter ideia do tamanho e da rapidez com que a empresa cresceu, a rede NotreDame Intermédica tinha em sua carteira, em 2015, 1,3 milhão de clientes em planos de vida e 900 mil em odontológicos. O grupo registrou, de janeiro a junho deste ano, receita líquida de R$ 5,1 bilhões, aumento de 31,2% em relação ao primeiro semestre de 2019, quando fechou com R$ 3,9 bilhões. O lucro disparou, com alta de 99,4%, saltando de R$ 192,5 milhões, no primeiro semestre de 2019, para atuais R$ 383,8 milhões.

Para o empresário, o sentido do ritmo agressivo nas aquisições está associado à sinergia dos gastos. Um cateter, usado na veia do paciente na rede própria com os procedimentos envolvidos, custa R$ 26. “Se eu mando o paciente para um hospital credenciado, sai por R$ 360. Então, temos o compromisso de evitar desperdício e diminuir custos a partir da estrutura própria”, disse Machado.

HOSPITAL EM EXPANSÃO 

Com as aquisições, a NotreDame terá mais de 3,2 mil leitos e uma rede de 29 unidades sob gestão própria. 

Além do corte de custos, o setor de saúde brasileiro está aberto para um processo de consolidação. Para Anseloni, da InBusiness, “o que vimos há alguns anos no sistema financeiro e, mais recentemente, no varejo, deverá se repetir nos setores de saúde e de educação.” Machado reconhece que a crise provocada pela Covid-19 agilizou o ritmo das mais recentes aquisições da NotreDame. “A crise gera um pouco de incerteza e isso acelera discussões. A pandemia contribuiu, sim, para que essas operações se firmassem em tempo mais rápido do que seria o normal.” O presidente da operadora acredita que, seguindo esse forte ritmo, será possível dobrar de tamanho em cinco anos. “Temos participação de mercado aquém do que poderíamos, levando em conta o nosso tamanho. Chegamos perto de 8% de market share e não é impossível alcançar 16% até 2025. Faz parte do nosso DNA a consolidação de empresas”, afirmou.

NOVAS ESTRATÉGIAS 

Buscar escala é apenas um dos motivos que tem movimentado o setor. A pandemia não mudou apenas a maneira de as empresas fazerem seus negócios, com a ênfase no trabalho remoto. Segundo o consultor e fundador da Condere, Paulo Cury, isso levou os empresários a mudar de estratégia. “A maior parte das transações que observamos neste ano foi de empresas que queriam iniciar ou ampliar suas atividades no meio digital”, disse ele. “Muitas empresas perceberam novos nichos e mercado e foram atrás de tecnologia para explorá-los.” Além disso, afirmou Cury, algumas transações foram realizadas por companhias nacionais e internacionais que decidiram focar em suas atividades principais. “Houve muitos casos de desinvestimentos de empresas internacionais que tinham atividade pequena no Brasil, e de companhias que saíram do que não era o core business”, disse ele. Cury avalia que os negócios deverão continuar aquecidos nos setores de saúde, educação, alimentos e bebidas, que é bastante resiliente à crise, excetuando-se os restaurantes.

NEGÓCIOS AQUECIDOS 

Mário Anseloni, presidente da consultoria InBusiness, afirma que grande parte das disputas acontecem nos bastidores das negociações. 

Há alguns senões, porém. Assim como a crise tornou as empresas mais baratas, ela também fez os compradores ficarem mais seletivos, o que deverá reduzir os preços e encompridar os processos. “Os compradores estão mais propensos a proteger o caixa”, disse Cury. “Eles têm preferido alongar os pagamentos e têm levado mais tempo auditando os números.” Segundo ele, operações que eram fechadas em seis meses agora estão demorando cerca de dez meses para sair devido a essa cautela adicional. O valor médio também caiu, recuando de R$ 300 em 2019 para R$ 100 milhões neste ano, contabilizando-se apenas as transações que tiveram seus valores divulgados, disse Anseloni. E o ambiente de negócios no Brasil também retarda as operações, especialmente quando uma das partes não fala português. “A complexidade de fazer negócios no Brasil tem várias formas: legal, fiscal, trabalhista, além dos problemas recentes de imagem”, disse Anseloni. Mesmo assim, ele diz estar otimista com as perspectivas, pois muitas operações que haviam sido paralisadas pela crise voltaram a andar. “A poeira começou a baixar, há mais perspectivas no horizonte”, disse ele. Cláudio Gradilone e Sérgio Vieira Leia mais em isto é dinheiro 04/09/2020