Nas últimas semanas, a B3 se deparou com notícias de que há pelo menos dois grupos se movimentando para montar bolsas no Brasil. A primeira foi a CSD BR, que tem como sócios a Chicago Board Options Exchange (CBOE), o Santander e o BTG Pacutal. E, mais recentemente, veio a notícia da ATS, uma controlada da ATG, comprada pelo fundo Mubadala de Abu Dhabi. Para o presidente da B3, Gilson Finkelsztain, não há o que temer. Na visão dele, a bolsa já enfrenta concorrência em setores diferentes, sem contar a disputa global, que para ele é bem mais nociva.

Mesmo se mostrando tranquilo, Finkelsztain afirma que a bolsa está preparada para esse cenário, com todos os canhões voltados para a criação de novos produtos. A B3 tem lançado novidades com uma frequência que não se via antes. Para diversificar a receita, também vem trabalhando com afinco na área de dados e o presidente da empresa espera que essa frente de atuação, que hoje representa 5% da receita, possa chegar a ser 15%. Sobre o potencial do mercado, o executivo acredita que os 5 milhões de CPFs com contas na bolsa podem chegar aos 10 milhões.

A seguir, os principais trechos da entrevista que o presidente da B3 concedeu ao Valor Investe:

Valor Investe: Existem grupos diferentes se movimentando para montar bolsas concorrentes da B3. Como o senhor vê a possibilidade de a bolsa enfrentar uma concorrência de fato pela primeira vez?

Gilson Finkelsztain: Primeiro, já temos competição em vários mercados. Já temos outros players em balcão, a própria CSD, por exemplo, a Nuclea, a Laqus, depositária, Cerc, todas concorrentes da B3. Muita gente nos acusa de termos monopólio. Como assim monopólio? A regra é igual para todo mundo, quem quiser pode lançar uma bolsa. Só que é natural que, dada a relevância do negócio, exige capital, investimento, caixa. Então, é um negócio que, em nenhum lugar do mundo, é feito por fintechs, porque coloca em risco o mercado inteiro. No mundo, o negócio bolsa é concentrado. E, além da competição local, a gente enfrenta a competição global há muitos anos. Essa, aliás, é a que mais me preocupa. A competição local é ótima para provocar a gente para cada vez mais fazer as coisas [de forma] melhor e mais rápido. O que mais me preocupa é a competição global, porque as bolsas emergentes acabam exportando a sua liquidez para os mercados globais, como Nova York, Londres e Chicago.

Valor Investe: Como a B3 está se preparando para esses concorrentes que podem chegar ao Brasil?

Finkelsztain: É claro que nos estimula a sermos ainda melhores. Mas já temos, por princípio, a missão de nos anteciparmos às necessidades do mercado, tendo uma disciplina muito forte na parte de inovação e de lançamento de produtos. A experiência mostra que, uma nova bolsa, em qualquer país que você for analisar, a chance de sucesso dela é muito maior se a bolsa que já está instalada não tiver infraestrutura ou tecnologia de ponta para fazer frente a esse novo integrante. E nenhuma dessas coisas me preocupa hoje. A B3 não tem nenhum gap tecnológico relevante e temos um leque muito forte de lançamentos de produtos para os próximos 12 meses, todos alinhados com as necessidades do mercado. Não há o que o mercado esteja precisando e que não estejamos pensando ou já até criamos. Às vezes, inclusive, nos antecipamos e lançamos produtos que demoram dois ou três anos para pegar. Foi assim com o COE [Certificado de Operações Estruturadas], com o Tesouro Direto, está sendo assim com os blocos de venda de ações, opção de Copom. A maior resposta que a gente tem para a concorrência é essa, de suprir os investidores naquilo que eles necessitam, nos antecipando, sempre.

Valor Investe: Os clientes da B3 aprovam a entrada de novas bolsas?

Finkelsztain: Entendo que o marketing desses grupos seja: ‘olha, os clientes estão pedindo novas bolsas, eles querem uma concorrência nesse segmento’. Mas a gente não ouve isso dos clientes, eles não pedem uma nova bolsa. A gente ouve exatamente o contrário, que, eventualmente, dependendo do momento do mercado, muitas infraestruturas podem até ser pior, porque corre-se o risco de dividir a liquidez em várias bolsas.

Valor Investe: Mas por que isso não acontece no mercado americano, por exemplo, onde várias bolsas não comprometeram a liquidez?

Finkelsztain: Porque o mercado americano é de 100 a 150 vezes maior que o nosso. Então você pode ter um mercado fragmentado lá e mesmo assim continuar com liquidez suficiente para as 6 mil, 7 mil empresas listadas ainda terem um bom volume de negócios. Aqui, o que ouvimos dos clientes é que talvez ainda esteja muito cedo para isso.

Valor Investe: O senhor acha que existe a possibilidade de o mercado brasileiro continuar com uma única bolsa?

Finkelsztain: Não tenho dúvida de que, em algum momento, o mercado vai crescer e teremos outras bolsas. Isso é sim ou sim. A gente ouve dos clientes que agora terão que se conectar com duas bolsas, monitorar dois bolos diferentes de negócios, executar o melhor preço que há entre os dois. Tudo isso vai exigir investimento por parte dos bancos, corretoras. E será que eles vão capturar esses investimentos com mais volume de negócios? Por isso que não há várias bolsas na Austrália, no México, na Espanha, na Itália, que são mercados mais comparáveis com o nosso.

Valor Investe: Fala-se no mercado que o calcanhar de Aquiles na concorrência para a B3 é a “internalização das operações”, quando uma corretora fecha um negócio entre dois clientes seus, sem passar pela bolsa. É verdade?

Finkelsztain: Hoje, a CVM já deixa que isso seja feito, mas tem um limite. Isso já existe desde 2019 e se chama RLP [sigla para “retail liquidity provider”, ou provedor de liquidez], que é quando a própria corretora se torna a contraparte da operação, em vez de outro investidor. Isso pode ser feito, mas tem um limite de 15% do volume total e 50% do volume de varejo. Nós, aqui da B3, advogamos que esses limites continuem. As corretoras internalizam as operações e só usam o sistema da bolsa para fechar a operação. Tem um marketing bonito de custo zero para o cliente. Só que não é. As corretoras ganham um spread [diferença entre os preços] para fazer isso. É justo? Nem sempre. Porque a corretora tenta fechar negócio entre clientes seus e os outros investidores, que estavam até antes na fila para fazer a operação, saem no fim do dia chupando o dedo. Na internalização não existe o princípio de bolsa, que é o do preço justo. O mercado passa a ter o que chamamos de ‘dark pool’, ou seja, preços no escuro, já que a formação de preços começa a ser feita de forma privada, dentro das corretoras. E quem paga a conta são os outros investidores que não participaram da formação de preços. Lá atrás, nos manifestamos para a CVM, dizendo que, mais do que a entrada de novas bolsas, nos preocupamos com a internalização mesmo.

Valor Investe: Mas, se essa internalização não é boa para os mercados, por que é algo tão difundido nos EUA?

Finkelsztain: Nos EUA, é algo bastante praticado, mas em vários outros mercados é proibido. No Canadá e no Japão é proibido, por exemplo. Tem vários outros mercados que proíbem também. E agora, nos Estados Unidos, eles estão se questionando se não foram longe demais nessa forma privada de mercado. Precisa tomar cuidado com esse marketing: ‘ah, nos EUA é super difundido, então é bom’.

Valor Investe: O senhor falou do esforço da bolsa de sempre estar lançando novos produtos. O que vem por aí?

Finkelsztain: Estamos num momento fértil para muita coisa e o que mais me deixa animado agora é a evolução dos mercados de renda fixa privada. Esse mercado tá bombando. Há cinco, sete anos, os bancos se digladiavam para emprestar dinheiro para as empresas. Isso asfixiava o mercado de capitais. Os bancos já não emprestam mais tanto dinheiro. Então as operações de crédito para as empresas estão sendo feitas pelo mercado, de forma pulverizada, com uma boa participação de investidores pessoas físicas. Esse mercado se desenvolveu muito. Teve o advento das debêntures incentivadas de infraestrutura [com isenção de Imposto de Renda] que alavancou esse mercado de crédito. As corretoras fizeram um bom trabalho, fomentando esse mercado secundário de crédito privado, que já cresceu dez vezes.

Valor Investe: Quais produtos a bolsa está criando para esse mercado de dívida privada?

Finkelsztain: Criamos uma plataforma de renda fixa, eletrônica, unificada para negociar título públicos, que é o Trademate. Estamos partindo agora para os títulos privados serem negociados nessa plataforma eletrônica. Então, faremos uma família de produtos na sequência. Queremos no futuro ter derivativo de crédito com base no spread desses títulos. Também ter o papel já ‘swapado’ [troca de rendimento] para um contrato futuro de DI ou um contrato futuro de inflação. Na família de renda fixa tem muita coisa por vir. Também lançamos uma combinação de taxa de juros, que é um contrato chamado de Exchange Defined Strategies (EDS), também conhecido como FRA. Também lançamos opções de juros. Aqui tem um mundo para se desenvolver em renda fixa, combinada com juros, com os swaps de inflação, por exemplo, que estão crescendo bastante em liquidez.

Valor Investe: O que a bolsa pode fazer para ajudar no mercado de ações, que anda mais fraco?

Finkelsztain: Os volumes de negociações de ações estão baixos. Mas o mercado de opções flexíveis de ações está bem forte. Então, as corretoras estão estimulando para os clientes institucionais e pessoas físicas operarem essas opções flexíveis. Isso nada mais é que você pegar as suas posições e tentar rentabilizar. O mercado tem sido muito criativo nas estratégias de opções flexíveis de ações e isso explica por que o número de pessoas físicas não está caindo.

Valor Investe: Essas opções e outros tipos de produtos mais sofisticados estão mais do que compensando o mercado de ações parado neste ano?

Finkelsztain: Se a gente olhar nos últimos dois anos, só para o mercado à vista de ações, incorretamente, dizemos que o mercado de capitais no Brasil não está evoluindo. Não, o mercado de ações evoluiu porque as pessoas físicas estão mais ativas, e mais ativas nessas operações mais sofisticadas. A evolução nos últimos cinco anos foi muito positiva. Hoje é muito democrático o acesso aos investimentos.

Valor Investe: Qual a sua expectativa para o segundo semestre?

Finkelsztain: Eu espero que o mercado de ações melhore e que os IPOs voltem a acontecer. Mas o mercado não está parado.

Valor Investe: A bolsa está olhando outros mercados como, por exemplo, de infraestrutura para negociação de criptomoedas. Como está esse braço de atuação?

Finkelsztain: Fizemos isso primeiro para o banco Inter e agora já estamos fechando outros contratos. Nós atuamos pela nossa empresa chamada B3 Digitas. Nesse mercado de cripto, cada instituição lança a sua plataforma. Então, o que a gente montou foi a infraestrutura para as corretoras oferecerem esse tipo de produto para os seus clientes. A B3 Digitas é um pouco da nossa vontade de estar perto do mundo de ‘tokenização’, da tokenização de ativos não regulados. Como é que vai ser esse futuro? Ninguém sabe, mas, eventualmente, podemos ter ativos não regulados negociados num formato de token, numa carteira digital. Já temos ativos muito diferentes sendo tokenizados e podemos, daqui a algum tempo, ter até ações. A gente tem provocado até o regulador [CVM]. Por que a gente não pode, num feriado em que a bolsa está fechada, por exemplo, transferir uma ação da Petrobras para uma carteira digital?

Valor Investe: Qual é a reação da CVM quando a B3 leva demandas tão sofisticadas para eles?

Finkelsztain: Eles têm boa vontade em nos ouvir e pensar na viabilidade dessas ideias. Eles têm preocupações legítimas de proteção ao investidor, de transparência de preço. Em ativos regulados, como ações, por exemplo, está mais difícil convencê-los. É na B3 Digitas que estamos olhando e estudando esses novos mercados. A B3 Digitas vai começar a olhar até a digitalização e negociação de direitos musicais, algo super inovador. Existe todo um universo de ativos não regulados que estamos olhando e analisando como a B3 e suas empresas podem atuar.

Valor Investe: Essa onda de investimentos no exterior preocupa?

Finkelsztain: Isso hoje não me preocupa. Tirava o meu sono quando havia uma desigualdade de tratamento. Quando o investidor podia ir para fora, mas não conseguia comprar BDR [recibos de ações estrangeiras] na B3, porque os BDRs aqui eram proibidos. Mas isso mudou. Há dois anos, quando só os investidores qualificados podiam investir em BDRs, … leia mais em Valor Investe 17/04/2024