Será o maior assalto do planeta: as startups de tecnologia financeira, conhecidas como fintechs (do inglês financial technology), estão prontas para “roubar” US$ 4,7 trilhões em negócios dos bancos tradicionais, conforme estudo do Goldman Sachs. Assalto, é bom lembrar, é uma expressão militar que significa “tomar de surpresa” e, a despeito do uso corrente, não tem a ver com crime, exatamente. E isso, o assalto, acontecerá porque, no mundo, há um grau de confiança no sistema bancário formal que é como um pêndulo: tende a oscilar conforme a economia flutua em altos e baixos.

O investimento global em tecnologia financeira foi de US$ 12 bilhões em 2014. No ano passado, apenas nos três primeiros meses, haviam sido investidos R$ 10,5 bilhões. As instituições financeiras estão entre as empresas que mais gastam com tecnologia da informação (hardware e software), com 18% do total investido.

No entanto, isso não é suficiente para bloquear o acesso das fintechs aos recursos bancários mundiais. Essas empresas estão em todos os setores financeiros que perpassam a vida de um usuário: na gestão financeira (apps como GuiaBolso, Minhas Economias e Organizze); gestão contábil; meios de pagamento (como o PagSeguro, do UOL); instituições de pagamento; plataformas de crédito; investimentos; equity crowdfunding; microfinanças; seguros; suporte operacional; antifraude; e o mais badalado símbolo da economia virtual, o Bitcoin, moeda completamente independente de governos, bancos centrais ou empresas que, até o momento, sozinha, girava recursos globais de US$ 7 bilhões.

Trens pagadores

As fintechs são temidas como se fossem assaltantes de trens pagadores por uma razão bem simples; podem significar — e já mostram isso — uma ruptura completa do sistema financeiro convencional e, no limite, o colapso de grandes bancos internacionais e brasileiros. Algo que tem acontecido em vários setores como o de táxis, por exemplo, com o Über; com a locação de imóveis, com o Airbnb; e Netflix, que rompeu com o padrão linear da TV. Os bancos têm razão em temer esse inimigo invisível que invade seus valiosos cofres: se forem bem-sucedidos, chegará o dia em que, ao abrirem os cofres-fortes, as instituições descobrirão que o dinheiro se foi. É o fim do dinheiro, enfim? Ou, como os americanos o definem, moneyless ou cashless.

Falar em “extinção é exagero, no curto prazo. Mas, tenho insistido no fato inexorável e irreversível da desmaterialização das interfaces e meios de pagamento. Moeda é mídia, sempre foi. Com a digitalização das interfaces, todo o processo de criação de valor ganha estatuto de intangibilidade” afirma o economista, sociólogo e pesquisador Gilson Schwartz, um dos palestrantes desta edição de ProXXlma, onde debateu, apropriadamente, o fim, ou melhor, o futuro do papel-moeda. Schwartz, que também é jornalista, foi articulista da Folha de S.Paulo, é pesquisador associado do núcleo de política e gestão tecnológica da USP e, ainda, professor do departamento de cinema, rádio e TV da ECA, na mesma universidade. “A cultura bancária é menos importante do que a cultura digital. A depender do sentido e do marco regulatório, as moedas irtuais podem acentuar a chamada desbancarizaçâo” analisa o pesquisador. Para Schwartz, o Bitcoin já desempenha funções de papel-moeda em inúmeras transações. “Mas” ressalva, “é apenas um passo a mais, longe de ser o final ou definitivo, na reconfiguração ontológica da moeda digital”

É muito improvável que o papel-moeda acabe assim, de uma hora para outra. Até porque as moedas mundiais são símbolo de um país. Mas, da mesma forma como aconteceu com a Comunidade Europeia, que criou o euro e unificou a moeda de 19 dos 28 países membros, nada impede que uma moeda se torne universal. Mas será que o cliente bancário é capaz de abandonar seu banco em detrimento de agências virtuais e aplicativos que colocam o banco, literalmente, no bolso?

Para o diretor de inovação do Banco Original, Guga Stocco, é bem provável que isso aconteça. O Original, da holding J&F, proprietária da JBS (dona de marcas como Friboi, Seara e Havaianas), é a primeira instituição financeira puramente digital do Brasil e funciona tanto em desktop quanto por meio de aplicativo, no smartphone. A única ação que o conecta ao mercado financeiro tradicional é o fato de o cliente ter de sacar o dinheiro físico em caixas eletrônicas da rede 24 Horas. “Isso não significa que vamos criar uma moeda nova, e sim que, tudo o que faremos, resolveremos por meio digital. Estamos subordinados às regras do Banco Central assim como qualquer outro banco” detalha Stocco.

Mas, como pure player, o Original se diferencia até mesmo, e principalmente, naquela que é o bastião do papel-moeda: a carteira. No banco, a carteira (ou m-wallet, de mobile vvallet) baixa transferências de dinheiro via aplicativo e serve para pagar estabelecimentos. Quer dizer, mantém as funções básicas de débito e crédito. E isso muda muita coisa, diz o executivo, a começar que não precisa mais do plástico (que é o nome técnico do cartão de débito ou de crédito). “A extinção (do dinheiro) caminha a passos largos’,’ afirma Stocco.

O fim

Há, no mundo, pelo menos um exemplo do fim do dinheiro. A Suécia deverá ser o primeiro país a eliminar por completo o papel-moeda. Isso, segundo a previsão do banco central sueco, deve acontecer até, no máximo, 2030. Atualmente, apenas 2% dos pagamentos são feitos por meio de dinheiro, ante 7%, em média, na Europa. Já em 2021, em cinco anos, o uso do dinheiro deve cair para 0,5% entre os suecos. Processo equivalente acontece na Dinamarca, também na Escandinávia, onde a circulação de dinheiro físico caiu 90% desde 1990. Ainda este ano, o governo dinamarquês pretende acabar com o uso de cédulas e moedas para pagamentos de lojas de roupas, restaurantes e postos de gasolina. E na Noruega, ainda para ficar na região escandinava, os pagamentos em dinheiro estão abaixo dos 4%.

No Brasil, até mesmo o Congresso Nacional já entrou na conversa. O deputado Regi-naldo Lopes (PT-MG) propôs, por meio do Projeto de Lei nL> 48/2015, a extinção pura e simples do dinheiro em espécie. Nas justificativas, o parlamentar alega que, no ano passado, “dos 47 bilhões de transações financeiras realizadas, sete bilhões serão feitos pelo celular e liquidados fora do sistema bancário convencional. A parte realizada por ‘não bancos’ — empresas como PayPal, PagSeguro, Mercado Pago e outros — cresceu duas vezes mais no período”

Claro que o projeto de lei não deve, efetivamente, virar lei. Mas, o debate já está aí, no ar. Com poder de chegar ao Congresso. E a despeito do lobby dos banqueiros tradicionais. Para Stocco, do Banco Original, a adoção do banco virtual é uma questão de tempo. E curto, diga-se. O executivo cita dois casos de startups que amadureceram em prazos relativamente médios: “o Netflix que, em pouco mais de dois anos de operação forte no Brasil, fatura mais do que o SBT, e o Uber, que só recentemente ganhou projeção” Para a tecnologia “pegar” diz, acontecem intersecções. “Primeiro, foi o celular; depois o smartphone, que possibilitava o uso de dados; daí surgiram os mapas, com latitude e longitude (localização); e aí o design para, finalmente, chegar ao Uber” exemplifica. Com a carteira móvel, ou m-wallet, é a mesma coisa, diz. “Antes, não havia nada pronto, não havia como conectar com os bancos e telcos. Quando conectou, começou a criar o ecossistema — pagamento da academia, da lanchonete da academia, do estacionamento da academia etc. —, a jornada já está completa” aponta.

“A mudança, que está apenas começando, é de natureza social e política. É um erro acreditar que as moedas são objetos técnicos. No mínimo, se trata de invenção sociotécnica. Portanto, mais mudanças ocorrerão na medida em que os indivíduos e as comunidades locais sejam reconstruídas como nós de redes globais” pondera Schwartz, da IJSP. E lança uma questão extremamente futurista: “As grandes empresas assumirão o papel dos bancos centrais?”

Ainda sobre a lentidão na assimilação de mobile payment (ou mobile wallet), Schwartz afirma que a regulação monetária e financeira no Brasil expressa um pacto de poder implícito. “As coisas funcionam ou deixam de funcionar a depender dessa pactuação do setor bancário com o Estado. Esse arranjo é imutável? As empresas globais ‘fmanceirizadas’ atuam como bancos e se organizam a partir de uma engenharia financeira que se torna mais versátil e inovadora por meio da digitalização da vida. Apple (com o Apple Pay) ou Volkswagem (com o banco Volkswagen) são apenas a ponta do iceberg. A luta envolve definições críticas na infraestrutura de telecomunicações. No Brasil, e no resto do mundo, a chegada da internet das coisas torna esse horizonte ainda mais aberto. O colapso do sistema financeiro ‘as we know it’ está apenas começando” pontifica.

O dinheiro já é binário, atesta Stocco, do Banco Original. “Você transfere via wallet aqui no Brasil e recebe lá na China” exemplifica. “O mundo inteiro está sendo traduzido em dados, em sistemas de informação codificada segundo a lógica booleana das sequências de 0 e 1. O futuro está no código, não na informação” completa Schwartz. O professor da USP, aliás, anunciou, durante este evento ProXXIma, o projeto Moedas Criativas pela Cidade do Conhecimento, em parceria com a Unesco. A iniciativa é uma espécie de Bitcoin da educação, cultura e empreendedorismo. Alguém duvida que o dinheiro, no mínimo, se ainda não acabou, mudou de forma? Sim, o maior assalto da história aos bancos convencionais está em curso.  Meio e Mensagem Especial Leia mais em portal.newsnet 10/05/2016