Para desenvolver o tema, vamos tomar como hipótese um negócio de aquisição da totalidade das ações (ou quotas) representativas do capital de uma sociedade empresária.

Negócio desta natureza propõe desde logo a dúvida quanto ao objeto da alienação: é o estabelecimento empresarial ou é a própria “empresa”?1

É verdade que não estamos, na hipótese, diante de um contrato de simples “trespasse”, aquele expressamente admitido no Código Civil, pelos arts. 1.143 e 1.1442, que tem o estabelecimento mercantil ou empresarial como objeto unitário do negócio jurídico. Em consequência, a princípio, não se poderia aceitar a ideia de que a alienação ou venda da totalidade das ações ou das quotas do capital representa a transmissão de todos os elementos que formam a organização do estabelecimento, porque a alienação das ações ou das quotas do capital não é a alienação unitária do estabelecimento empresarial.

A alienação da totalidade das ações
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Cabe assinalar que o nosso direito não reconhece a “empresa” como objeto de negócio jurídico, a exemplo do que ocorre no Direito português e no Direito alemão. Vale, neste ponto, anotar a doutrina de Catarina Monteiro Pires: “[a] empresa é um conjunto de coisas, direitos e valores patrimoniais e representa, jurídica e economicamente, uma unidade objetiva. Dito de outro modo, é um conjunto de coisas, direitos, deveres e bens imateriais que conformam uma unidade. Sendo a “empresa” uma unidade, a “venda da empresa” deve também ser compreendida unitariamente. Contudo, o Código Civil português, à semelhança do BGB anterior à reforma (modernização do direito das obrigações), não reconheceu a empresa como objeto de negócios e, apesar de, na tradição jurídica portuguesa, se conhecerem aprofundamentos relevantes da ideia de empresa como objeto de negócios, não é possível dizer que a empresa é, em sentido rigoroso, uma coisa ou um direito.”3

É certo que se defende também em boa doutrina que a venda de ações ou quotas representativas da totalidade do capital equivale à venda indireta da própria empresa e do respectivo estabelecimento mercantil, como universalidades. Depois de examinar a doutrina portuguesa e alemã, Catarina Monteiro Pires, com apoio especialmente em Ferrer Correia, segue esse entendimento, especialmente quando a venda é da totalidade da participação no capital.4

Afirmada esta posição, com a qual nos colocamos de acordo, que é bem aceita entre nós também, no sentido de que a aquisição da totalidade do capital representa aquisição indireta do estabelecimento e da própria empresa, é necessário assinalar que o objeto desse negócio (a empresa ou o próprio estabelecimento) assume a natureza de “coisa” (incorpórea ou especial)5, de modo a atrair, no que couber, o regime do trespasse.

Esta breve digressão nos encaminha ao reconhecimento de que a venda de “coisa” (empresa ou estabelecimento) atrai igualmente o regime da “garantia” e dos “vícios” que é próprio dos contratos comutativos, de forma que ao adquirente seria dado sempre o direito de exigir do alienante suportar a responsabilidade por dívidas (passivo) anteriores, não declaradas no balanço ou no contrato, porque o passivo não se transfere automaticamente ao adquirente, como expressamente consignado no art. 1.146 do Código Civil (O adquirente do estabelecimento responde pelo pagamento dos débitos anteriores à transferência, desde que regularmente contabilizados, continuando o devedor primitivo solidariamente obrigado pelo prazo de um ano, a partir, quanto aos créditos vencidos, da publicação, e, quanto aos outros, da data do vencimento.).6 Se a venda é de “coisa”, o vício oculto (dívidas não declaradas) pode determinar a responsabilidade do vendedor e até a evicção. Este entendimento é sustentado amplamente na doutrina e na jurisprudência.7

De outra parte, é necessário lembrar que o estabelecimento, instrumento da empresa, reúne e organiza um conjunto de coisas para o desenvolvimento da atividade empresária. É o empresário que dá a cada coisa a afetação necessária ao estabelecimento e, consequentemente, ao desenvolvimento da empresa. Esta afetação decorre exclusivamente da vontade do empresário, que pode acrescentar ou retirar coisas da organização própria do estabelecimento. Decorre desta observação a enorme relevância que tem a vontade do empresário sobre as coisas na constituição do estabelecimento e no desenvolvimento da empresa.

Destaca-se na doutrina brasileira o entendimento de Oscar Barreto Filho, de enorme prestígio, que sustenta que a natureza do estabelecimento como universitas facti pressupõe “que a sua existência e o seu conteúdo dependem, principalmente, da vontade de quem é seu titular. Deve-se, portanto, colocar em relevo essa vontade, para determinar quais são os elementos que o compõem, quando constitui objeto de negócios jurídicos.”8

Certo é que, quando há alienação do estabelecimento junto com sua exploração, como sustenta Alfredo de Assis Gonçalves Neto, “o adquirente só assume a obrigação de responder pelo pagamento de débitos anteriores à transferência que estejam devidamente escriturados.”9 Em outras palavras, a venda da empresa ou do estabelecimento não transfere ao adquirente o passivo não declarado e assumido na relação entre as partes do negócio (não estamos aqui se referindo a eventual responsabilidade direta ou solidária do sucessor na empresa).

É fácil perceber como tem importância em negócio dessa natureza o levantamento prévio, assim como a declaração no contrato, do que efetivamente segue ao adquirente com a alienação, o que vale tanto para o passivo, como para o ativo, porque o adquirente é sucessor, propriamente cessionário, somente dos créditos que foram expressamente declarados no contrato ou em levantamento prévio (auditoria, balanço ou  due diligence).  Nenhuma dívida ou crédito é transmitido com a venda das ações ou das quotas, salvo aqueles que são próprios e necessários ao desenvolvimento ordinário da atividade empresária.

Os débitos e os créditos não são elementos de empresa, e não se transmitem, portanto, com a venda da empresa ou do estabelecimento. Elementos de empresa são exclusivamente aqueles necessários ao desenvolvimento da atividade econômica empresária. Na lição de Jorge Manuel Coutinho de Abreu, “[o]s elementos empresariais a que o trespassante tenha direito por título obrigacional não se incluem no âmbito natural. Assim, por exemplo, não pode o trespassante ceder o gozo de máquinas, veículos ou mobiliário alugados ou emprestados sem autorização do locador ou do comodante. Atendamos por fim aos restantes contratos e créditos (cujos objectos não são elementos das empresas) e aos débitos – tudo fenómenos que, considerados directa ou indirectamente, não devem (em regra) merecer a qualificação de elementos ou meios empresariais. Avanço já o princípio: tais contratos (rectius, posições contratuais), créditos e débitos não cabem em regra no âmbito natural de entrega. Por não serem elementos do estabelecimento (o trespasse do “todo” não coenvolve as não-“partes”) e por assim resultar das normas legais gerais.”10-11

Para a cessão de créditos relativos ao estabelecimento, sustenta Coutinho de Abreu que valem as regras do Código Civil, e deve ocorrer por acordo (expresso ou tácito) entre trespassante-credor e trespassário.12

No direito brasileiro é exatamente assim. Prevê o art. 1.149 do Código Civil (A cessão dos créditos referentes ao estabelecimento transferido produzirá efeito em relação aos respectivos devedores, desde o momento da publicação da transferência, mas o devedor ficará exonerado se de boa-fé pagar ao cedente.), para o trespasse ou venda da empresa (ainda que indireta), que ocorra a necessária “cessão” de crédito referente ao estabelecimento transferido.

Evidentemente a cessão de crédito deve ser aquela para a qual o Código Civil exigiu ato de vontade expressa (art. 286). Não se cuida, por certo, do crédito corrente da atividade desenvolvida pela empresa, como o pagamento de mercadorias faturadas, serviços realizados etc., integrantes dos elementos de empresa e que se transmite naturalmente com a sua alienação ou com a alienação do estabelecimento, salvo disposição em contrário. O crédito, cuja cessão não se opera por força do trespasse, ou da venda da empresa, é o crédito que não se identifica com a atividade empresarial desenvolvida e não integra os elementos de empresa.

O trespasse ou a venda da empresa, é necessário salientar, não impõe a cessão dos créditos do estabelecimento, justamente porque os créditos não são elementos da empresa. Por isso a correta interpretação de Arnoldo Wald: “Tendo em vista que não há imposição legal, a cessão dos créditos do estabelecimento transferido se opera de forma convencional, ou seja, por acordo entre as partes, ou ainda, de forma judicial, resultante de sentença que determine a cessão. (…) Note-se que o novo Código não faz restrições quanto à espécie de transferência do estabelecimento. Assim, sujeita-se à aplicação do art. 1.149 todo ato que dê ensejo à troca de titularidade do estabelecimento, seja por trespasse, arrendamento, usufruto ou sucessão.”13

Nesse sentido também Gladston Mamede: “Conforme o que tenha sido ajustado entre as partes no contrato de trespasse, poderá haver cessão dos créditos relativos às atividades empresariais relativas ao estabelecimento transferido. Há, aqui também, uma sucessão jurídica subjetiva, havida no polo ativo da relação de crédito/débito, ou, visto por um ângulo, sub-rogação na condição de credor. Aplicam-se aqui, a toda evidência, os artigos 286 a 298 do Código Civil.”14

Ainda, na doutrina brasileira, encontra-se nesse sentido a opinião de Alfredo de Assis Gonçalves Neto. Para ele, “[a]s dívidas não são bens; integram o passivo da empresa em razão do seu exercício. Os créditos, de sua vez, são o produto da atividade do empresário; representam resultados dessa atividade e, como tal, sua destinação, a rigor, não é de incorporar-se ao estabelecimento. São as relações jurídicas, mantidas entre o empresário e terceiros, que asseguram o funcionamento permanente da empresa. Assim, os créditos vêm a ser os direitos decorrentes das relações jurídicas mantidas com terceiros; as dívidas, os ônus para o exercício ou do exercício desses créditos. Sob essa ótica, incluem-se e se englobam como bens incorpóreos do estabelecimento todos os direitos que viabilizam ou asseguram seu funcionamento, como os oriundos dos contratos de duração (de fornecimento, de distribuição, de concessão mercantil, de franquia, de agência), das relações de emprego (das quais resulta a manutenção de pessoal qualificado no atendimento da clientela) e, para não detalhar mais, das que determinam o fluxo dos clientes (através, por exemplo, de contratos formulários). Isoladamente considerados, os contratos são as fontes desses direitos; os créditos e as dívidas são, respectivamente, seus resultados e os ônus para exercê-los.”15 (destacamos em negrito)

O crédito, portanto, como resultado da atividade do empresário, ou especialmente como resultado do dano que sofreu (indenização), não se incorpora ao estabelecimento ou à empresa. O dano que foi experimentado pelos sócios, com reflexo patrimonial direto no valor da empresa vendida, não pode ser atribuído ao adquirente. Como acentua Alfredo de Assis Gonçalves Neto, “eles são fruto de negócios jurídicos mantidos entre o empresário e terceiros”.

É possível que os créditos sejam incluídos no negócio de transmissão da empresa ou do estabelecimento (alienação de quotas e ações ou trespasse), mas é preciso que se faça esta inclusão expressamente, por contrato. O silêncio não pode ser interpretado contra o titular do crédito. Ninguém pode ser privado dos seus bens, sobre os quais exerce direito absoluto e potestativo, por sua quietude e placidez, ou seja, simplesmente porque nada disse. A transmissão tácita do crédito só pode ser admitida, por exceção, quando esse crédito é originário de relação jurídica inerente à exploração do estabelecimento16, o que não se verifica no caso em exame.

O crédito ao qual nos referimos é aquele gerado a partir da atividade da própria sociedade que foi objeto do negócio, e que não se incorpora ao estabelecimento. A situação é muito diferente em relação à participação que a sociedade negociada pode ter no capital de outras sociedades, sabido que estas participações pertencem à própria sociedade e não aos seus acionistas e quotistas. Como as ações e quotas do capital da sociedade são representativas da participação que ela tem em outra sociedade, é natural que se considere inerente à alienação dessas ações e quotas os direitos patrimoniais sobre as participações societárias pertencentes à sociedade negociada, salvo se o contrato expressamente dispuser de forma diferente. Autor Carlos Alberto Garbi – pós-doutor em Ciências Jurídico Empresariais pela UC – Universidade de Coimbra. Mestre e doutor em Direito Civil pela PUC/SP. Desembargador aposentado do TJ/SP. .. leia mais em Migalhas 25/10/2023