Do ponto de vista estritamente societário, para consolidação das operações de M&A[1] são essenciais apenas o “contrato mãe”[2] da operação e os atos societários correlatos (o registro da alteração do contrato social, no caso das sociedades limitadas, e a anotação nos livros de registro e a transferência de ações, no caso das sociedades anônimas). No entanto, o comum (e sugerido, inclusive) é que, dadas as complexidade e relevância, tais negociações envolvam quantidade adicional de documentos: é a supremacia da livre disposição das partes. Mas, não raras vezes, esses documentos são celebrados por partes distintas e, salvo por uma leitura sistemática, não guardam relação expressa entre si.

Considerando as peculiaridades dessas operações, tem sido também cada vez mais comum que as partes escolham a arbitragem como via de resolução de conflitos. Isso não quer dizer que o Judiciário é incapaz de resolver tais questões, mas os benefícios da alta especialização dos árbitros e do sigilo (por natureza) dos julgamentos são especialmente atrativos quando as operações de M&A precisam ter seus aspectos contratuais discutidos. É, justamente, diante desses benefícios que se negociam as cláusulas compromissórias[3].

Considerando esse cenário, lança-se o seguinte questionamento: na ausência de tal cláusula em um (ou alguns) dos contratos que consubstanciam a operação de M&A, a cláusula compromissória do contrato mãe[4] pode ser imposta para solução dos conflitos?

É sobre essa problemática que o presente artigo se debruça.

Ainda que não haja a intenção de se estender sobre questões conceituais, é preciso que se estabeleçam algumas premissas sem as quais a resolução da questão acima disposta, senão difícil, tornará a presente leitura mais exaustiva do que se propõe:

  1. O Código de Processo Civil (Lei nº 13.105/2015) estabelece, de forma expressa, a força executiva das sentenças arbitrais[5], de modo que não há que se discutir a constitucionalidade, legitimidade ou enforcement do instituto;
  2. Aqui, se cuidará, especialmente de considerar o aspecto de direito material privado, e não os contornos puramente processuais da arbitragem, de modo que o cerne da questão remonta à fase da celebração dos documentos e o momento do requerimento da arbitragem (ou seja: o que se entende poder levar à apreciação do juízo arbitral); e
  3. Sem desconsiderar os contornos de jurisdicionalidade da arbitragem que são amplamente reconhecidos, o viés norteador do presente material é o da compatibilização da autonomia negocial das partes com os demais princípios norteadores dos negócios jurídicos (e da tutela sobre a resolução dos conflitos).

Pois bem, superadas e definidas as premissas acima, segue-se para o deslinde da provocação tema deste artigo.

Os contratos coligados podem ser compreendidos, aqui, como aqueles que, mesmo sem a determinação expressa, organizam-se numa mesma relação estrutural. Isto é: sem perder sua autonomia (são plenamente válidos e executáveis individualmente), estão orientados dentro de um contexto maior que os engloba.

Por exemplo: numa operação de M&A, as partes relacionam o instrumento particular de alienação das participações societárias a um contrato de cessão de direitos de propriedade intelectual, a um acordo de sócios e a uma locação de imóvel. Fica evidenciado que todos esses instrumentos, respeitadas suas particularidades, orientam-se por um mesmo objetivo, ou seja, são parte de um negócio jurídico global e, portanto, compõem uma única estrutura jurídica e fática.

M&A e Arbitragem

Eles estão tão intimamente ligados que a rescisão de um deles pode, conforme o caso, pôr em xeque todo o racional da operação e, portanto, comprometer a vontade de contratar original das partes. Ainda que essa rescisão não tenha o condão de, automaticamente, desfazer os negócios validamente negociados, é plenamente possível compreender como tal circunstância afetará (inclusive economicamente) os interesses então equilibrados.

Diante dessa sinergia dos contratos coligados, exceto nos casos em que os instrumentos que orbitam em torno do contrato mãe prevejam expressamente o afastamento da solução de arbitragem para os conflitos oriundos a ele, filiamo-nos ao entendimento de que a cláusula compromissória, uma vez oposta no contrato principal, deve ser interpretada como extensível aos demais instrumentos da operação de M&A. Nesse sentido:

Deve-se ter em mente que a cláusula compromissória é parte do delicado equilíbrio que se constrói negocialmente, contrapondo não apenas o valor das prestações principais, mas o “preço” de cada um dos direitos e prerrogativas barganhados entre as partes para alcançar um equilíbrio normativo. Restringir, portanto, o seu alcance legitimamente esperando implica quebra da confiança estabelecida pelo vínculo e do equilíbrio econômico contratualmente estabelecido: a ineficácia da cláusula compromissória pode gerar um custo adicional incompatível com o respeito à cuidadosa composição de interesses juridicamente consolidada pelas partes[6].

Note-se que a confiança e a boa-fé são norteadoras desse entendimento. Não por acaso são também os norteadores das operações de M&A materializadas pelos contratos coligados aqui comentados.

Como adiantado acima, é possível que esses grupos de contratos relacionem partes diferentes, isto é, nem todos os signatários dos contratos coligados ao contrato mãe foram parte deste. E, apesar de mais delicado, nosso entendimento de extensão da cláusula compromissória se mantém – e se filia ao posicionamento já declarado pelo Superior Tribunal de Justiça (STJ)[7]. Isso porque o tratamento diferenciado de um ou alguns contratos (unicamente pelo fato de conterem “terceiros”) pode imputar maior insegurança ao tratamento da operação, de que pode decorrer importantes desequilíbrios à estrutura contratual originalmente pactuada.

Desse modo, é plenamente reconhecível que o “terceiro” (entre aspas porque é terceiro apenas ao contrato mãe), ao celebrar o contrato no bojo da operação de M&A em comento, quando conhecia o contexto da estrutura negocial em que se insere (e aqui reside, portanto, o consentimento tácito à solução de arbitragem), pode ser submetido à cláusula compromissória não oposta ao instrumento que celebrou, mas ao contrato mãe.

Nada aqui quer dizer que a extensão da cláusula compromissória limita as hipóteses de execução específica dos contratos, ou que as disposições claramente em sentido diverso devem ser desconsideradas. O que se defende, portanto, é que devem os contratos coligados (em especial, mas não somente, nas operações de M&A) ser interpretados de forma sistêmica, em benefício da boa-fé e com vistas à preservação da confiança que foi depositada pelas partes.

Ao nosso ver, essas orientações somente contribuem para um ambiente negocial mais maduro, seguro e confiável. E, claro, sem prejuízo de que os advogados e partes, na prática empresarial-arbitral, tenham sempre em mente essas situações peculiares vivenciadas e adaptem, na medida do possível, os instrumentos jurídicos no intuito de ter cada vez mais clareza e segurança nessas operações, contribuindo, assim, para o bom ambiente negocial e para a segurança jurídica. Autora: Nathalia De Biase Mulatinho é advogada e sócia da  área de Direito Empresarial de Martorelli Advogados

[1] Como são conhecidos os negócios jurídicos associados à compra e venda de participações societárias, sigla em inglês para as transações de mergers and acquisitions.

[2] Aqui, a expressão “contrato mãe” é utilizada para indicar o contrato principal da operação de M&A, qual seja, o instrumento particular por meio do qual as partes se comprometem com a cessão ou alienação das participações societárias e dos direitos a elas inerentes, comumente chamado de “SPA”. Não há que se falar em hierarquia entre os instrumentos, apenas em coerência sintática.

[3] De acordo com o art. 4º da Lei 9.307/1996 (a Lei da Arbitragem), “a cláusula compromissória é a convenção através da qual as partes em um contrato comprometem-se a submeter à arbitragem os litígios que possam vir a surgir, relativamente a tal contrato”.

[4] Neste ponto, importante destacar que não há que se falar em hierarquia entre os instrumentos, prima facie, mas apenas em coerência sintática.

[5] Ao estabelecer que: “Art. 485. O juiz não resolverá o mérito quando: (…) VII – acolher a alegação de existência de convenção de arbitragem ou quando o juízo arbitral reconhecer sua competência”.

[6] KONDER, Carlos Nelson. O alcance da cláusula compromissória em contratos coligados: leitura a partir da tutela de confiança. Revista de Arbitragem e Mediação. vol. 63. ano 16. p. 295-331. São Paulo, Ed. RT, out-dez. 2019.

[7] Nos termos do REsp 1569422/RJ, Terceira Turma, Relator Ministro Marco Aurélio Bellizze, DJe 20/05/2016: “De se destacar que a manifestação de vontade das partes contratantes, destinada especificamente a anuir com a convenção de arbitragem, pode se dar, de igual modo, de inúmeras formas, e não apenas por meio da aposição das assinaturas das partes no documento em que inserta. Absolutamente possível, por conseguinte, a partir do contexto das negociações entabuladas entre as partes, aferir se elas, efetivamente, assentiram com a convenção de arbitragem”.

Com informações da lbcomunica 20/09/2023