Entre os meses de julho e setembro, o Conselho Administrativo de Defesa Econômica (Cade) submeteu à consulta pública uma versão preliminar do chamado Guia V+ (Guia de Análise de Atos de Concentração Não Horizontais), que busca consolidar as melhores práticas e procedimentos adotados pela autoridade na análise de atos de concentração com efeitos não horizontais.

O documento é resultado de esforços de um Grupo de Trabalho do Cade, que atuou em conjunto com o Instituto Brasileiro de Estudos de Concorrência, Consumo e Comércio Internacional (Ibrac) durante o ano de 2022 para debater o tema. No final de agosto, a autoridade lançou também o documento de trabalho “Fusões Conglomerais: Teorias do dano e jurisprudência do Cade entre 2012 e 2022”, organizado pelo Departamento de Estudos Econômicos (DEE).Pontos de atenção em contratos de Fusões e Aquisições

As publicações, bastante aguardadas pela comunidade antitruste brasileira, consolidam a experiência da autoridade na análise de atos de concentração verticais e conglomerais, e marcam a entrada oficial do Cade numa discussão que está cada vez mais no centro dos principais debates sobre antitruste na atualidade.

Prova disso, vale destacar, é que também em julho de 2023, o DOJ (Departamento de Justiça dos EUA) e a FTC (Federal Trade Commission) publicaram a nova versão das suas Merger Guidelines, consolidando as orientações sobre a análise de concentrações horizontais e de integrações verticais nos EUA. Do outro lado do Atlântico, a inglesa Competition and Markets Authority reprovou a aquisição da Activision Blizzard pela Microsoft, com fundamento nos impactos sobre um ainda nascente mercado de cloud gaming.

Ainda, a reprovação da aquisição da GRAIL pela Illumina, no mercado de testes para câncer – ambas envolvendo empresas que não eram concorrentes diretas – também reforçaram como o aspecto conglomeral das fusões se tornou central para o controle de estruturas contemporâneo. Um recente levantamento conduzido pelo Ibrac mostrou que o Cade tem recebido cada vez mais casos envolvendo efeitos não horizontais, inclusive atos de concentração complexos, que exigem aplicação de remédios especificamente voltados para mitigá-los.

Os efeitos dos atos de concentração econômica analisados pelo direito antitruste são tradicionalmente agrupados em três categorias: horizontais, verticais e conglomerais. Ao longo das últimas cinco décadas de enforcement antitruste, os efeitos horizontais ocuparam de forma quase isolada o centro das atenções, desde que teóricos da Escola de Chicago consolidaram a sua posição no sentido de que danos verticais e conglomerais seriam improváveis, e que tais integrações poderiam trazer eficiências substanciais ao mercado e aos consumidores[1].

Ao longo dos últimos anos, contudo, essa percepção começou a mudar. Em meio aos fenômenos de digitalização da economia, das crises econômicas desde 2008, e da pandemia da Covid-19, os olhos da opinião pública se voltaram com maior interesse para as grandes corporações que se estruturaram nas últimas décadas, especialmente no setor de tecnologia, e as críticas a seu modelo de negócios e efeitos sobre a economia passaram a reverberar com maior intensidade em diversos setores da sociedade.

O antitruste foi cobrado por ter adotado uma postura supostamente leniente para com o crescimento vertical e conglomeral de empresas, e suas lentes tradicionais passaram a ser reputadas como insuficientes para lidar com uma economia mais complexa e conglomeral. É justamente em meio a essa encruzilhada, que o direito da concorrência passou a dispensar uma maior atenção às fusões verticais e conglomerais, movimento no qual o Cade agora se insere com o Guia V+ e o documento sobre fusões conglomerais do DEE.

Frente a essa renovada onda de escrutínio sobre integrações verticais e conglomerais, ganham proeminência abordagens pouco ortodoxas do antitruste, com teorias do dano arrojadas e inovadoras que buscam reposicionar o ferramental do direito da concorrência frente a novos mercados e modelos de negócio. Essas novas tendências, que irradiam principalmente da academia, demandam um olhar mais ponderado e cauteloso por parte das autoridades, que devem se equilibrar entre os novos desafios de uma economia mais complexa, mas sem pesar a mão da regulação de uma forma que possa acabar por prejudicar modelos de negócio inovadores e eficientes. Num país em desenvolvimento como o Brasil, em que a inovação precisa ser reiteradamente fomentada, essa cautela necessita ser ainda mais redobrada.

O Guia V+, que tem esse nome justamente por abranger também fusões conglomerais, não apenas verticais, incorpora algumas dessas tendências recentes, principalmente do debate sobre antitruste e mercados digitais. O documento dá destaque a teorias do dano como o “impedimento à interoperabilidade e multi-homing”, e o “aumento dos incentivos para fechamento de ecossistemas digitais” ao discutir a análise do potencial anticompetitivo de um ato de concentração não horizontal.

Embora seja pertinente que o enforcement do Cade reflita essas tendências, há dúvidas se um documento de soft law como o Guia V+, que norteará a análise de atos de concentração de forma mais ampla, deveria adentrar nesse nível de minúcia. Segundo o Anuário de 2022 do Cade, os principais setores que notificaram operações no ano passado foram: i) geração de energia elétrica; ii) incorporação de empreendimentos imobiliários; iii) comércio atacadista de defensivos agrícolas, adubos de fertilizantes e corretivos de solo; e iv) extração de petróleo e gás natural.

Ou seja, o cotidiano da análise de atos de concentração por parte do Cade no Brasil está muito mais dominado por mercados de tijolo e argamassa (brick-and-mortar) do que por mercados digitais. Trazer para o Guia V+ um ferramental muito próprio da discussão digital, dessa forma, pode acabar criando empecilhos e complexificações que mais atrapalhariam do que reforçariam o enforcement do Cade.

Já o documento de trabalho do DEE, que tem um propósito distinto, que consolida a jurisprudência do Cade a respeito do tema, elenca 4 teorias do dano para identificar os danos potenciais decorrentes de operações com efeitos conglomerados: (i) atuação transversal (reciprocity dealings); (ii) fortalecimento do poder econômico (entrenchment doctrine); (iii) redução substancial da concorrência (subtantial lessening of competition); e (iv) aumento da concentração agregada. Chama a atenção que dentre essas teorias do dano, apenas a primeira é mencionada na minuta preliminar do Guia V+. Também o conceito de operações conglomerais adotado pelo Guia V+ diverge do documento do DEE, que utiliza a definição da Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico (OCDE), mais genérica, enquanto o guia opta por uma definição mais específica.

Essas divergências só reforçam a complexidade do tema e a necessidade de cautela no caminho que o Cade pretende adotar com relação ao enforcement de fusões não horizontais. A complexidade da economia contemporânea nos levou a um ponto em que é impossível ignorar os impactos de integrações verticais e conglomerais. O Cade, e qualquer autoridade de defesa da concorrência ao redor do mundo, precisa estar preparado e bem munido para analisar operações desse tipo. Contudo, é preciso ponderar bem as ferramentas de enforcement que serão adotadas, sopesar as teorias do dano e acima de tudo, coadunar a análise concorrencial à realidade econômica do país, de modo a auxiliar no desenvolvimento econômico e não ficar em seu caminho…. Leia mais em jornalfloripa 24/09/2023

[1] Vide o discurso de William J. Kolasky, chefe da divisão antitruste do DOJ, perante Simpósio da George Mason University em 2001, no qual muito desse consenso de Chicago é sintetizado: https://www.justice.gov/atr/speech/conglomerate-mergers-and-range-effects-its-long-way-chicago-brussels

Fusões verticais e conglomerais na mira do Cade

Interesse por atos de concentração não horizontais é bem-vindo, mas abordagem precisa ser cautelosa..Autores \: advogados  ANNA BINOTTO e MATEUS BERNARDES O artigo também foi divulgado pelo site Jota em 24/09/2023