Percebe-se, de pronto, que diferentemente do Brasil – que optou por ter dois Guias, um voltado para concentrações horizontais e outro para concentrações verticais e conglomerais -, no Merger Guidelines dos Estados Unidos, as guidelines não são apresentadas de modo segmentado.

Conforme mencionado nos oito artigos anteriores,1 a versão preliminar do chamado “Guia V+” do Cade consolida os procedimentos e as melhores práticas usualmente adotados pela autarquia na análise de efeitos não horizontais em atos de concentração. Como evidência da atualidade do Guia V+ do Cade, vale observar que, também em julho de 2023, o Departamento de Justiça (DOJ) e a Federal Trade Commission (FTC) dos Estados Unidos publicaram o Merger Guidelines, que visa a consolidar os guias de análise de concentrações horizontais e de integrações verticais atualmente existentes naquele país.2 Interessante notar que a escolha realizada nos Estados Unidos foi diferente da realizada no Brasil. Explicamos.

Percebe-se, de pronto, que diferentemente do Brasil – que optou por ter dois Guias, um voltado para concentrações horizontais e outro para concentrações verticais e conglomerais -, no Merger Guidelines dos Estados Unidos, as guidelines não são apresentadas de modo segmentado. O Merger Guidelines norte-americano apresenta treze orientações gerais, aplicáveis a todos os tipos de operações, independentemente da forma de sua implementação. Na estrutura, é dividido em quatro seções:

  • 1) visão geral a respeito das principais preocupações concorrenciais com as fusões;
  • 2) aplicação detalhada das treze orientações gerais;
  • 3) ferramentas que o FTC e o DOJ possuem para a definição de mercados relevantes e
  • 4) potenciais defesas passíveis de apresentação durante a instrução antitruste nestas autoridades norte-americanas.

Nesse documento, deixou-se claro, ainda, pela primeira vez, que a proteção da concorrência nos mercados de trabalho é prioridade para a política antitruste.

O guia surge, justamente, em um contexto em que diversos doutrinadores sustentam que o exame dos efeitos de uma operação também deve abranger mercados de trabalho e que a autoridade antitruste deve atuar preventivamente diante da formação de monopsônio (i.e., poder de mercado do player empregador com relação à contratação de mão de obra)3. Estudos recentes apontam, por exemplo, que a forte atuação do DOJ tende a gerar aumento nos níveis de emprego e na folha de pagamento de funcionários4.

 

Nos termos da nova proposta de guia estadunidense, mercados de trabalho são importantes mercados de compra (“important buyer markets”), tendo um ato de concentração o potencial de, entre outros, (i) eliminar a concorrência entre os players na contratação de determinada categoria de trabalhadores; (ii) elevar os riscos de coordenação entre os players do mercado de trabalho e (iii) incrementar a posição dominante de um agente econômico.

Mais detalhadamente, o guia aponta que mercados de trabalho frequentemente apresentam elevados custos de troca e atritos de busca (search frictions), especialmente em razão do esforço que um trabalhador deve fazer para encontrar, candidatar-se e adaptar-se a um novo emprego. Além disso, há necessidades pessoais que podem limitar ainda mais a mobilidade dos trabalhadores, tanto com relação à ocupação desempenhada quanto à localização geográfica do trabalho. É nessa linha que o guia aponta que mercados de trabalho tendem a ser estreitos e, como resultado da limitada concorrência, diversos danos ao trabalhador podem ser verificados – como, remunerações mais baixas, progressão salarial mais lenta ao longo dos anos e piora nos benefícios ou na qualidade do local de trabalho5.

Além disso, a proposta de atualização do guia vem depois de a Corte do Distrito de Columbia, nos Estados Unidos, bloquear uma operação em razão de potenciais efeitos anticompetitivos especificamente voltados ao mercado de trabalho, em agosto de 20226. A operação proposta entre a Simon & Schuster (S&S) e a Penguin Random House (PRH), avaliada em USD 2,175 bilhões, envolvia a fusão de duas das maiores editoras de livros do mundo e foi proibida após longa instrução e julgamento, com fundamento na Seção 7 do Clayton Act. Após doze dias de discussão (incluindo depoimentos de autores, especialistas econômicos, agentes literários e executivos do setor), concluiu-se que esta operação levaria a significativo incremento no poder de monopsônio das requerentes em relação ao mercado mundial de aquisição de direitos de publicação dos autores mais vendidos (relevant market for the acquisition of U.S. publishing rights to anticipated top-selling books). Entendeu-se que a operação aumentaria a concentração de mercado na indústria editorial, permitindo que as grandes editoras pagassem menores valores a determinados autores pela aquisição dos direitos de publicação de seus livros.

Na linha das principais preocupações de concentrações econômicas destacadas na nova proposta de Merger Guidelines, a Corte estadunidense concluiu que a operação resultaria em uma “empresa capaz de controlar uma indevida parcela do mercado relevante e em um aumento significativo da concentração dos players atuantes”7. Somado a isso, entendeu-se que a maior concentração do mercado no cenário pós-operação elevaria o risco de práticas anticompetitivas e de coordenação pelas grandes editoras, arrefeceria a concorrência entre os players e, em última instância, prejudicaria os leitores (i.e., consumidores finais) ao reduzir a quantidade e a variedade de livros publicados. Nessa esteira, verifica-se que – apesar de constar de forma inédita em guia publicado por autoridades de defesa da concorrência – as preocupações identificadas em relação a impactos de operações em mercados de trabalho já foram consideradas, em 2022, em caso concreto analisado pela agência e Corte estadunidense.

No Brasil, o debate ainda deve começar8. Não há, até o momento, caso em que impactos concorrenciais especialmente voltados a trabalhadores tenham sido detidamente analisados pelo Cade em atos de concentração9. Além disso, as autoridades não disponibilizaram quaisquer orientações voltadas a mercados de trabalho em seu Guia de Concentrações Horizontais (Guia H)10, no Manual Interno da Superintendência-Geral para atos de concentração apresentados sob o rito ordinário11 ou no recente Guia V+. Recorde-se, porém, que houve menção, em 2019, ao fato de que o Cade estaria elaborando guia sobre o assunto (Labor Antitrust Guideline)12. Nesse contexto, não se nega que precedentes são importantes pontos de partida para qualquer discussão, mas igualmente (ou mais) importante é o desenvolvimento de guias visando à promoção de orientações e esclarecimentos a respeito do tema, sendo, portanto, de grande relevância a recente iniciativa estadunidense. Por Amanda Athayde e Julia Braga: Amanda Athayde – Professora doutora adjunta na UnB de Direito Empresarial, Concorrência, Comércio Internacional e Compliance, consultora no Pinheiro Neto e Julia Braga – Advogada na prática de Direito da Concorrência. É bacharel e mestre em Direito Comercial pela UnB. Foi pesquisadora visitante na Università di Bologna, em Bologna/Itália. Leia mais em .migalhas. 16/10/2023