A saúde brasileira passa por um momento de reorganização, tanto no setor público como no privado. O primeiro, representado pelo Sistema Único de Saúde (SUS), lida com a crônica escassez financeira para atender com qualidade os 75% da população que só têm essa alternativa. Já as operadoras de planos de saúde sentem o peso da elevação dos custos em seu desempenho operacional, apesar da conquista de novos clientes.

No caso da saúde pública, a emenda da transição conseguiu recuperar R$ 22 bilhões para a área. Assim, o orçamento total para 2023 do Ministério da Saúde é de R$ 189,3 bilhões, ante R$ 166,4 bilhões no ano passado. A maior parte dos recursos vai para ações e serviços em saúde: R$ 170,4 bilhões. Este valor, em 2022, foi de R$ 153,2 bilhões.

Segundo a ministra da Saúde, Nísia Trindade, sem a verba assegurada pelo Congresso Nacional durante a transição não seria possível relançar o Programa Farmácia Popular, o Mais Médicos, o Programa de Redução das Filas e o Complexo Econômico-Industrial da Saúde. “A integração da atenção primária com a especializada, com foco especial na transição digital da saúde, também está entre as prioridades”, diz a ministra.

Além das iniciativas acima, o ministério vem buscando retomar a coordenação nacional do SUS, revogando diversas portarias e normas contrárias às diretrizes do sistema – não pactuadas com os Estados e municípios –, e relançou o movimento pela vacinação e atenção especial à crise sanitária dos Yanomamis.

Hora de reorganização da saúde

Para Trindade, há muito o que fazer, sobretudo em relação à saúde da mulher, à busca pela eliminação de doenças que atingem populações mais carentes como tuberculose, à saúde da população negra, às políticas de saúde mental e ao reforço da atenção primária à saúde. “Trabalhamos para ir além das questões emergenciais. Estamos orientados por visões estruturantes do sistema de saúde, da integralidade do cuidado e tendo como outro pilar fundamental o complexo econômico industrial do setor. Este último congrega 11 ministérios e nove instituições de Estado para tratar a saúde como investimento, visando conseguir menor dependência de insumos externos. A saúde é um componente de uma política estratégica que o país precisa ter”, afirma a ministra.

Para Arthur Chioro, ex-ministro da Saúde e presidente da Empresa Brasileira de Serviços Hospitalares (Ebserh), é fundamental a ação do ministério para retomar a coordenação nacional do SUS. “A máquina pública foi profundamente desestruturada. Este é o momento de reconstrução de uma equipe comprometida com um pacto federativo cooperativo e solidário.”

Segundo ele, há expectativas positivas, a partir do novo arcabouço fiscal, para que a saúde tenha algo mais do que a capacidade de custeio para pensar em investimentos, aquisição de equipamentos e avanços na área digital. A Ebserh quer disponibilizar ao SUS, Estados e municípios um aplicativo digital de integração de dados.

A saúde pública, diz outro ex-ministro, José Gomes Temporão, continua diante de um dilema. Embora a emenda da transição tenha conseguido recuperar recursos para o orçamento do Ministério da Saúde neste ano, há dúvidas de como resolver o crônico subfinancimento e mesmo desfinanciamento, com perda concreta de recursos pelo SUS. “E o futuro? Esse é um ponto em aberto e que depende não apenas de iniciativa do governo, mas também do Congresso”, diz Temporão.

Ele ressalta que o país precisa decidir sobre o que está na Constituição, que é “priorizar a saúde como um direito de todos e um dever do Estado, por meio de políticas econômicas e sociais, ou manter a situação atual de fragmentação, dualidade, subsídios ao mercado e fragilização do SUS?”.

Temporão observa que em países com sistemas universais de saúde, como Reino Unido e Canadá, o setor privado tem participação importante, mas é subordinado e orientado por diretrizes públicas. É um quadro distinto do visto no Brasil, onde a área privada segue uma lógica descolada do SUS. “É essa subordinação do setor privado às orientações e diretrizes políticas do sistema universal que devemos buscar.”

Ainda que o cenário seja mais promissor para a saúde pública atualmente do que no governo anterior, a professora de saúde coletiva da Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ), Lígia Bahia, evita um otimismo exagerado. Ela não crê, por exemplo, em alterações significativas na dinâmica do setor que poderiam fazer o SUS avançar.

“A bancada da saúde no ‘Conselhão’ [Conselho de Desenvolvimento Econômico Sustentável, recriado pelo presidente Lula] está constituída quase integralmente por representantes da saúde privada”, observa a professora. Segundo ela, isso deve impedir mudanças significativas em temas como o ressarcimento pelas operadoras ao SUS, os subsídios fiscais ao setor privado, os empréstimos oficiais e as anistias de dívidas das empresas.

Bahia diz que, por conta da verba curta para todas as necessidades, uma saída para a saúde pública é uma reforma, por dentro, da rede de atenção. “Valendo-se da concessão de ganhos salariais, como o piso da enfermagem, para mudar rotinas de atendimento que incluam mais compromisso com qualidade e empatia”, destaca.

Em outra frente, deve-se buscar dar transparência aos controles de acesso por meio de dispositivos que permitam à população lugar na fila, horários efetivamente disponíveis para atendimento e realização de inquéritos de satisfação fidedignos. Estudo do Instituto de Estudos para Políticas de Saúde (Ieps), de abril deste ano, mostra que enquanto o orçamento federal da área se manteve estagnado nos últimos dez anos, as desonerações fiscais à saúde aumentaram 88%, chegando a R$ 70,7 bilhões.

Subsídios fiscais são pontos que deveriam estar contemplados na reforma tributária, na visão da presidente da Associação Brasileira de Saúde Coletiva (Abrasco), Rosana Onocko Campos. “A reforma deve rever, por exemplo, o quanto se pode descontar no Imposto de Renda com pagamentos de planos de saúde”, avalia.

Outra ação defendida por Campos é a criação, de forma estrutural, de um plano de carreira para o SUS. “O Brasil tem plano de carreira para militares, para a Justiça. É possível ter para a saúde pública.” Para ela, existe a necessidade de elevação dos gastos públicos, especialmente federais, com saúde. E lembra que nos países com sistemas públicos e universais, similares ao SUS, o gasto governamental supera o privado, ao contrário do que ocorre no Brasil.

De fato, os números brasileiros chamam a atenção. A conta-satélite da saúde, divulgada em 2022 pelo Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), relativos a 2019, indicam que as despesas finais com bens e serviços de saúde somaram R$ 711,4 bilhões, o que equivale a 9,6% do Produto Interno Bruto (PIB). Deste total, 3,8% do PIB foram gastos do governo e 5,8% privados, considerando famílias e instituições sem fins lucrativos. Em outros países, como a Alemanha, primeira no ranking, os dispêndios públicos representam 9,9% do PIB, seguida da França e do Japão, com 9,3%, do Reino Unido, com 8%, e do Canadá, com 7,6%.

Pelo lado privado, a Associação Brasileira de Planos de Saúde (Abramge), representante das empresas de medicina de grupo, estima crescimento de 1% a 1,5% no número de beneficiários neste ano. Com 82% dos beneficiários em planos coletivos, o setor depende da manutenção e geração de empregos formais. Dados da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS) indicam que em março o setor contava com 50,5 milhões de usuários. Em 2022, foram incorporados 1,59 milhão de beneficiários.

Embora o número de clientes venha crescendo, não é suficiente para fazer frente aos desafios do setor. Segundo o superintendente-executivo da Abramge, Marcos Novais, o ritmo da incorporação tecnológica, os excessos na utilização – especialmente nas terapias continuadas – e as fraudes puxam para cima as despesas. “Incorporação tecnológica custa caro, é preciso lógica e racionalidade nesse processo. Se estamos gastando mais, temos de cobrar mais.” Ele lembra o piso da enfermagem, que terá impacto brutal sobre os hospitais e sobre as operadoras de planos de saúde. “O setor vive uma insegurança legislativa enorme”, destaca.

Diante desse cenário, Novais vê na verticalização e nas parcerias estratégicas boas alternativas e refuta a ideia de que o modelo de remuneração aos prestadores de serviços seja o maior gargalo das operadoras. “Se o problema principal fosse esse, já teria sido mudado”, diz.

Verticalizar, acrescenta, é um modelo que funciona. Novais considera que o ritmo de fusões, aquisições e mesmo expansões orgânicas deve desacelerar e os negócios fechados recentemente terão um esforço visando ampliar eficiências. Isso porque as margens baixas do setor não pagam novas investidas, diante do patamar alto dos juros atuais. Assim, os investimentos estarão focados onde trazem mais retorno. De qualquer forma, ele vê ainda espaço para a consolidação setorial.

Leandro Sanches, sócio-líder de saúde da EY no Brasil e na América do Sul, segue o mesmo raciocínio. Ele diz que os movimentos de aquisições e fusões das operadoras verticalizadas devem seguir, mas em ritmo mais lento. “A prioridade agora é a captura de sinergias, integração e rentabilização das aquisições já feitas.”

Enquanto os protagonistas de aquisições e fusões vêm “digerindo” os ativos comprados, o setor toca, em paralelo, um conjunto de estratégias para conter custos e gerar caixa. Nessa lista, diz Sanches, estão operações de venda de imóveis e de ativos não “core business”.

Para ele, não se trata só de cortar custos. “A questão é aumentar receitas também, repasse de preço. É um processo que vem de um bom tempo e se não for realizado de maneira inteligente pode afetar diretamente os indicadores de qualidade na prestação do serviço de saúde”, diz.

“Com o fôlego financeiro de operadoras diminuindo e resultados recentes pouco animadores, o desafio dos grandes grupos é materializar a eficiência na operação por meio da sinergia dos negócios recém-adquiridos”, diz Fátima Pinho, sócia de Life Sciences & Health Care da Deloitte.

Segundo ela, operadoras sem aportes de capital significativos tentam blindar sua área de atuação e melhorar a sinistralidade, “o que passa diretamente por ações de verticalização estratégica”. Ela lembra que as operadoras vêm encontrando outras saídas para a sustentabilidade dos negócios, como a busca por parceiros com melhores desfechos e resolutividade. Além disso, é cada vez maior a utilização da tecnologia para alcançar eficiência operacional e combater fraudes e abusos.

O cenário setorial é desafiador, com maior frequência de utilização dos planos, aumento de preços de insumos médicos, cobertura obrigatória de tratamentos mais caros, fraudes e a judicialização, fatores apontados por Novais, da Abramge, e especialistas.

Vera Valente, diretora-executiva da Federação Nacional de Saúde Suplementar (FenaSaúde), entidade que representa 13 operadoras de seguro-saúde, lembra que em 2022 o setor teve prejuízo operacional de R$ 10,7 bilhões, com o índice de sinistralidade alcançando 89,2%.

“A escalada de despesas resulta em reajustes e mensalidades mais altas”, diz Valente. Segundo ela, as perspectivas para 2023 dependem dos indicadores dos dois primeiros trimestres, mas as evidências preliminares sugerem que a tendência de elevação de custos permanece.

A FenaSaúde lançou, em março, uma campanha de combate às fraudes e desperdícios. Segundo o Instituto de Estudos de Saúde Suplementar (IESS), estima-se em R$ 28 bilhões o impacto dessas práticas ilegais e negativas sobre o mercado.

Para Valente, o equilíbrio setorial nos próximos dois anos dependerá de desdobramentos de decisões tomadas pelo Congresso Nacional e pelo Supremo Tribunal Federal (STF). Uma delas é a obrigação de cobrir assistências fora da lista da Agência Nacional de Saúde Suplementar (ANS).

Valente defende a permissão para a oferta ao mercado de produtos como um plano ambulatorial exclusivo para consultas e exames. Por conta de sua cobertura restrita, que não incluiria a parte hospitalar, seu preço seria mais acessível. Isso poderia ajudar a impulsionar o mercado, especialmente no ramo de planos individuais e familiares. Esse segmento, afirma, “poderia ganhar mais força se o reajuste fosse baseado na variação de custos de cada operadora, possibilitando a revisão técnica de carteiras em desequilíbrio econômico-financeiro”.

Na primeira quinzena de junho, a ANS divulgou o índice de reajuste máximo dos planos individuais, de 9,63%, de maio de 2023 a abril de 2024. Já os planos coletivos, cujos reajustes são decididos por livre negociação, tiveram, neste ano, alta em geral de 25%, com alguns chegando a 35%… leia mais em Fenacor 04/07/2023