O tema do ágio é, sem sombra de dúvidas, uma das maiores fontes de controvérsias e nichos específicos de discussão no direito tributário. Muitos dos embates são resultantes do fato de que ora as normas tributárias vão ao encontro das normas contábeis, ora elas vão de encontro, cabendo ao intérprete ponderá-las, a fim de resolver tais embates.

Pois bem, o caso a ser analisado é o recente acórdão nº 9101-006.837, proferido em 7 de fevereiro de 2024 pela 1ª Turma da Câmara Superior de Recursos Fiscais, que firmou um importante precedente favorável aos contribuintes no “caso BM&F Bovespa” em relação aos requisitos estabelecidos para demonstração e comprovação do fundamento econômico do ágio, no regime anterior à Lei nº 12.973/2014.

Este texto será dividido em três momentos a fim de delimitar o escopo da análise do tema e de eventuais reflexões: inicialmente, será realizada uma breve síntese dos fatos da autuação e do julgado; em um segundo momento, serão analisados os requisitos legais à época quanto à comprovação do ágio, destacando a (falta de) especificidade do “demonstrativo” de fundamentação do ágio e distinções em relação ao novo regime; por fim, serão trazidas algumas considerações sobre o tema.
Da autuação e do julgado

Como dito anteriormente, o caso diz respeito ao processo nº 16327.720307/2017-34, que tem em seu bojo uma operação de combinações de negócios realizada entre as empresas BM&F S.A. e Bovespa Holding S.A., entre dezembro/2007 e novembro/2008, por meio de uma empresa-veículo, a Nova Bolsa S.A..

Ato contínuo à constituição da empresa-veículo, somou-se à operação dois principais eventos: a incorporação da sociedade BM&F S.A., a valor contábil, com emissão de novas ações aos sócios da incorporada; e a incorporação de ações da Bovespa Holding S.A, a valor de mercado, com a emissão de novas ações aos sócios da sociedade que teve suas ações incorporadas.

O ágio total registrado com a incorporação das ações da Bovespa Holding S.A pela B3 (a Nova Bolsa S.A.) derivou da diferença entre um valor de mercado atribuído às ações dela (R$ 17.942.090.162,46) e o seu valor patrimonial (R$ 1.557.178.796,47), isto é, R$ 16.398.291.654,53. O método para comprovar (aqui, assumindo figura de demonstrativo) essa valoração de mercado se deu pela média ponderada do valor das ações no pregão dos 30 dias que antecederam a operação.

Ocorre que, a partir da incorporação das ações da Bovespa Holding S.A. (e suas subsidiárias), também fora emitido um “laudo” de avaliação econômico-financeira emitido pela empresa de consultoria Deloitte, com base no método DCF (Fluxo de Caixa Descontado), que atribuiu o valor à Bovespa Holding num intervalo de R$ 20,72 a R$ 22,32 bilhões.

Essa diferença a maior correspondia à expectativa de rentabilidade futura das subsidiárias, a Bovespa SA (BVSP) e a Companhia Brasileira de Liquidação e Custódia (CBLC), que estavam sob controle societário da Bovespa Holding.

Nesse sentido, quando se teve a incorporação das ações da Bovespa Holding S.A., o registro global do ágio — com a finalidade de aplicação do método de equivalência patrimonial (MEP) — se deu por volta dos R$ 16,4 bilhões e com base na metodologia do valor das ações a mercado, ou seja, a despeito do que fora indicado pela empresa de consultoria no laudo — em relação a metodologia e valor.

A partir do valor global do ágio, a sociedade realizou as devidas deduções, chegando ao ágio amortizável de R$ 13,459 bilhões na apuração do IRPJ e da CSLL. Entretanto, a autoridade de fiscalização, ao analisar a operação, procedeu com a glosa da amortização em relação ao ano-calendário de 2012 e 2013, fundamentada em uma série de supostos requisitos não cumpridos, sintetizados a seguir:

A existência de diferença entre o valor de avaliação do referido laudo (R$ 20,72 bi a R$ 22,32 bi) e o efetivo valor atribuído ao negócio (R$ 17,9 bi) comprometeu a natureza de rentabilidade futura ao ágio;
Os valores de negociação das ações em pregões de bolsa de valores não apresentaram tecnicidade exigida pela lei para classificação dos fundamentos econômicos que poderiam ser atribuídos ao ágio amortizável;
O ágio de rentabilidade futura (alínea ‘b’ do § 2º do artigo 20 do Decreto-lei 1.598) é obrigatoriamente residual e, no caso, o ágio da operação se vinculou à avaliação de mercado destas duas empresas, devendo assim ser classificado como o de valor de mercado (alínea ‘a’);

A partir disso, a 1ª Turma da CSRF negou provimento ao recurso fazendário e validou a demonstração do fundamento econômico de rentabilidade futura por meio do “laudo”, confirmando a decisão da turma ordinária, realizando uma clara distinção entre a avaliação do valor da empresa e o preço praticado pelas partes.

Foram trazidos outros pontos para validar a amortização realizada pela sociedade, os quais não serão objeto de uma análise mais profunda neste texto.
Da (falta de) especificidade do ‘demonstrativo’ de fundamentação do ágio

Como se sabe, de acordo com o artigo 20 do Decreto-Lei nº 1.598/77 — no regime anterior ao da Lei nº 12.973/14, o contribuinte que avaliasse investimento de acordo com o método de equivalência patrimonial (MEP), decorrente de aquisição de participação societária, deveria desdobrar o custo de aquisição entre o valor do patrimônio líquido e o respectivo ágio (ou deságio), que seria a diferença entre o custo de aquisição e patrimônio líquido no momento da aquisição.

Ainda, a norma supramencionada se soma à previsão contida no artigo 7º da Lei nº 9.532/97, que juntas formavam o regime de amortização do ágio anterior à Lei nº 12.973/14. O regime previa três hipóteses de fundamentos econômicos para o ágio: valor de mercado (mais valia); expectativa de rentabilidade futura; e fundo de comércio e outros intangíveis.

De forma objetiva, estabelecia os seguintes requisitos para que o ágio fosse passível dedução por meio da amortização: primeiro, o ágio precisava ser fundamentado em expectativa de rentabilidade futura; segundo, precisava haver efetiva operação societária e dispêndio financeiro-econômico a valor de mercado; e terceiro, a sociedade poderia amortizar o ágio à razão de um sessenta avos, no máximo, para cada mês do período de apuração.

Ademais, a redação do artigo 20, § 3º, do Decreto-lei nº 1.598/77 “no regime da Lei nº 9.532/97” contava com o genérico requisito de que o contribuinte que apurasse o ágio baseado em rentabilidade futura deveria estar respaldado em documentação comprobatória da fundamentação econômica, sem estabelecer, contudo, qualquer parâmetro quanto à forma dessa documentação ou o prazo para elaboração.

Percebe-se que o aspecto genérico do texto é que gerou a principal controvérsia do caso concreto. Ou seja, se por um lado não havia dúvidas quanto ao montante do ágio (que era o resultado do custo de aquisição menos o PL), do outro, entretanto, a norma não assegurava a segurança jurídica adequada, gerando margem para interpretações extensivas por parte do fisco quanto à forma ou conteúdo do “demonstrativo” do ágio.

Desde já, este texto adota a premissa de que os regimes (anterior e atual) tratam de requisitos de comprovação completamente distintos. Enquanto a redação do artigo 20, § 3º, do Decreto-lei nº 1.598/77 — no “regime da Lei nº 9.532/97” — trazia o termo “demonstração”, com aspectos completamente subjetivos, a Lei nº 12.973/14, por sua vez, traz a expressão “laudo” e com critérios mais rígidos para comprovação da mais valia de ativos, sendo o ágio (no atual regime) uma parcela residual dos valores.

Para fixar tal premissa, são esclarecedoras as lições de Luis Eduardo Schoueri e Roberto Codorniz Leite Pereira [1]:

Com efeito, até o advento do novo marco legislativo, a “demonstração” a que se referia a legislação anterior desempenhava uma importante função de reconhecimento do fundamento econômico (subjetivo) do ágio. Após a alteração legislativa, a “demonstração” foi suprimida do ordenamento jurídico tendo sido substituída pelo “laudo”, cuja função já́ não é mais reconhecer o fundamento econômico do ágio, mas sim mensurar o exato valor correspondente à mais-valia dos ativos empresariais correspondente à diferença entre o seu valor justo e o patrimonial.

Tanto é assim que o item 46 do Pronunciamento Técnico CPC nº 15 de 2009, que foi grande fonte de inspiração ao legislador tributário (no atual regime) [2], dispõe que “o período de mensuração fornece um tempo razoável para que o adquirente obtenha as informações necessárias para identificar e mensurar, na data da aquisição […]”, elencando uma série de itens objetivos adotados em grande parte pela Lei nº 12.973/14 [3].

Sem maiores digressões, o novo regime estabelecido pela Lei nº 12.973/14 positivou perspectivas das normas contábeis, inclusive em relação à figura do demonstrativo, que passou a assumir figura de “laudo”, pois estabelece requisitos de contabilização dos ativos (a valor justo), mensuração da mais valia e, indiretamente, uma verificação precisa do valor residual do ágio.

Contudo, em se tratando de fatos ocorridos no regime anterior, cabe a este texto se ater (assim como foi feito pela CSRF — e não foi feito pela RFB) à controvérsia pela perspectiva do “demonstrativo”, e não do “laudo”.

Como mencionado anteriormente, a fiscalização, ao proceder com a glosa da amortização do ágio, fundamenta que avaliação constante no laudo da empresa de consultoria, por ter levado em conta o fluxo de caixa das empresas controladas pela Bovespa Holding (BVSP e CBLC), em verdade ensejou o enquadramento do fundamento do ágio não na rentabilidade futura, mas sim na mais valia de bens do ativo da investida, hipótese da alínea a do § 2º do artigo 20 do Decreto-lei nº 1.598/77, impossibilitando a dedução fiscal pretendida.

Em outras palavras, o demonstrativo teria indicado um valor com base na metodologia do fluxo de caixa descontado (de R$ 20,72 a R$ 22,32 bilhões), caracterizando-se na hipótese de ágio a valor de mercado (mais valia), a despeito do que fora praticado na contabilidade da sociedade: a incorporação das ações a valor de mercado de R$ 17.94 bilhões (precificação com base em pregões anteriores).

Entretanto, de forma acertada, o acórdão parece ter seguido um entendimento esclarecedor: no regime à época dos fatos, o demonstrativo (e não laudo, que só veio a ser requisitado com especificidades pela Lei nº 12.973/14) possuía um caráter subjetivo quanto ao seu conteúdo e à sua forma.

No voto do relator, conselheiro Luis Henrique Marotti Toselli, há uma breve conceituação importante quanto à figura do demonstrativo de fundamentação econômica, a fim de esclarecer a diferença entre os valores do laudo e da contabilidade da sociedade:

Quanto à diferença entre o valor de avaliação do Laudo e o efetivo montante atribuído na incorporação de ações, parece que a Recorrente, com a devida vênia, confundiu a fundamentação econômica do ágio com a precificação do negócio.

[…]

Daí a necessidade de não misturar a expectativa de rentabilidade futura, ordinariamente aferida em laudo de fluxo de caixa descontado, como foi o caso, com o preço final do negócio, que pode se valer de outras fontes.

Ou seja, apenas pelo fato de a metodologia de precificação do negócio apresentar um valor inferior à metodologia para fundamento econômico do ágio, não se pode concluir que o demonstrativo que traz o fundamento de rentabilidade futura resta prejudicado ou indevido para comprovar o ágio.

Afinal, o referido demonstrativo do antigo regime possuía um caráter apenas subjetivo quanto à fundamentação econômica do ágio, isto é, não guardaria referibilidade a valores ou metodologia específica, devendo apenas ser um indicativo do fundamento econômico que motivou a operação societária realizada.

Significa dizer, portanto, que o demonstrativo não deveria seguir formas específicas para demonstrar a expectativa de rentabilidade futura como, por exemplo, apresentando determinadas metodologias para cada fundamento ou valor especificamente determinável, mas sim indicar uma razoável comprovação da fundamentação econômica para a operação, sem qualquer vinculação quanto à precificação final (closing).

Não se pode deixar de mencionar que, ao tentar criar requisitos para demonstração da rentabilidade futura, como, por exemplo, ser obrigatoriamente residual essa fundamentação, o fisco acaba impondo uma espécie de juízo de valor em relação ao demonstrativo.

Além disso, conforme já exposto, sustentou-se erroneamente que o ágio da operação se vinculou à avaliação de mercado das empresas subsidiárias e, por conseguinte, deveria ser classificado como o de fundamento da alínea ‘a’ do § 2º artigo 20 do Decreto-lei 1.598/77 (valor de mercado — não amortizável).

Contudo, não se pode admitir o caráter residual da fundamentação de rentabilidade futura no demonstrativo ou mesmo uma ordem de preferência entre as hipóteses de fundamentação do ágio previstas na antiga redação do artigo 20 do Decreto-lei 1.598/77, a despeito do regime do Pronunciamento Técnico CPC nº 15 e da Lei nº 12.973/14 (que bebeu da fonte do purchase price allocation da norma contábil), visto que não havia qualquer previsão legal para tal aplicação à época.

Ou seja, em que pese a norma contábil (CPC nº 15) indique a necessidade de comprovação com critérios objetivos e a Lei nº 12.973/14 tenha, posteriormente, incorporado esses critérios, fato é que tais requisitos não eram previstos expressamente no texto legal do regime anterior — vigente à época do caso, sendo confirmada tal constatação pela própria CSRF.
Considerações finais

Por fim, é oportuno enfatizar que o tema agora conta com mais um importante precedente em favor dos contribuintes. Como se sabe, o tema do ágio gera nichos específicos de estudo e discussões.

Seja uma operação entre partes dependentes, seja a utilização de empresa-veículo, ou mesmo uma imposição de requisitos objetivos no demonstrativo da fundamentação econômica (que, frise-se novamente, não correspondia a um laudo de avaliação), o fato é que deve prevalecer a segurança jurídica das operações de combinações de negócios e o direito de os contribuintes recorrerem a um planejamento tributário de forma lícita.

Nesse sentido, revela-se oportuno o monitoramento de casos em relação ao demonstrativo do ágio, auferindo-se alguma previsão de desfecho favorável — no Judiciário e no órgão administrativo..Autor Rubem Rodrigues Soares Neto – advogado do setor contencioso judicial no escritório Rafael Pandolfo Advogados Associados,… leia mais em Conjur 18/04/2024